Podcast e programa de rádio sobre ciência, tecnologia e cultura produzido pelo Labjor-Unicamp em parceria com a Rádio Unicamp. Nosso conteúdo é jornalístico e de divulgação científica, com episódios quinzenais que alternam entre dois formatos: programa temático e giro de notícias.
Este é o terceiro episódio da série Cidade de Ferro, uma série sobre os impactos sofridos pela cidade mineira Itabira, conhecida por ser a cidade natal de Carlos Drummond de Andrade que usou de sua poesia e suas crônicas políticas para denunciar a destruição que a antiga Companhia Vale do Rio Doce – hoje, Vale, provocou na cidade, no Morro do Cauê, principalmente, que se tornou um buraco gigante. Em conversa com Lucas Nasser, pesquisador e advogado itabirano, autor do livro “Entre a Mina e a Vila: violações de direitos em Itabira”, Yama Chiodi, jornalista do Geict, colaborador do O2, mostra que Itabira não é só mineração, é uma cidade que tem memória, que tem povo, que tem multiplicidade e um tecido social muito heterogêneo, com várias experiências e modos de vida.
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Fernanda Capuvilla: A cidade que deu ao país mais de 6 bilhões de cruzeiros, saídos de seu subsolo, e que sustenta, sozinha, 70% da renda de uma grande ferrovia interestadual, continua sendo, paradoxalmente uma das mais desaparelhadas, mais melancólicas e mais esquecidas cidades brasileiras. Esta é a mancha escura, no quadro da indústria da mineração. E seria bom que deputados e senadores mineiros, sem distinção partidária, não somente secundassem aquele parlamentar, mas assumissem a dianteira de uma campanha que, afinal, se resume nisso: impedir que a exportação de hematita – o filé mignon da frase do cel. Juraci – deixe a Itabira, ou a Minas Gerais, apenas os ossos descarnados.
Correio da Manhã, 12 de junho de 1955.
Yama Chiodi: O trecho que você acabou de ouvir não vem do Drummond poeta, mas do Drummond cronista político, desencantando com o mundo pós-guerra e desolado do que foi feito da sua cidade natal. O trecho da crônica, como outros que você escutará nesse episódio, foram publicados no diário carioca Correio da Manhã, na década de 50. E a escolha desse período não é sem propósito. Foi na década de 50 que a então Companhia Vale do Rio Doce construiu sua primeira vila operária. Após sustentar o ferro necessário para a segunda guerra mundial, a Companhia vivia agora um segundo momento de sua produção. A hematita era arrancada da terra não mais apenas nos braços dos leões da Vale, mas com uso de explosões.
[som de explosão 1]
Não por acaso, a primeira vila operária recebia o apelido pejorativo de Explosivo. Longe do centro de Itabira e perto da mina do Cauê, a vila onde viviam os trabalhadores de mais baixa hierarquia da estatal ganhou nome jocoso que caracterizava uma das precariedades de viver tão perto das operações minerárias. O que havia entre a mina e a vila? A primeira vila operária foi também a primeira a ser removida quando o progresso que nunca chega passou com seu trator insaciável.
[ som de explosão 2]
Yama: Eu sou o Yama Chiodi, jornalista do GEICT, e neste terceiro episódio da série cidade de ferro, me encontro uma vez mais com o amigo itabirano Lucas Nasser, autor do livro “Entre a mina e vila: violações de direito em Itabira”. O episódio de hoje tem o mesmo nome do livro, que se encontra disponível pra download gratuito no link da descrição. Se você ainda não ouviu os dois primeiros episódios dessa série, corre lá antes pra ouvir.
[ Vinheta Cidade de Ferro ]
Yama: No episódio de hoje, a gente deixa a poesia de lado por um instante ao olhar pra geografia de Minas Gerais. Em uma das incríveis passagens do livro de José Miguel Wisnik sobre Drummond e a mineração, o autor diz que, abre aspas, “Os pontos culminantes da literatura mineira estão entranhados na geografia física, e em Minas Gerais a geografia física, entranhada na experiência individual e coletiva, é geografia humana”. E é isso que a gente busca aqui hoje. A geografia humana no coração da montanha, às margens da mina do Cauê. Das muitas remoções que aconteceram e acontecem até hoje, uma vila operária ganha protagonismo. Distante do centro de Itabira, mas perto da mina, a Vila Explosivo foi pioneira e o lar da família materna do Lucas.
Lucas Nasser: O Explosivo, além dela ser uma primeira vila operária da Vale, muito emblemática, porque ela cedeu espaço para a mina do Cauê, inclusive do Pico do Cauê, Famigerado, etc., que está na poesia do Drummond, que não existe mais. Tem uma relação familiar também. Meu avô foi um dos moradores da vila do Explosivo, do Pé de Pombo, minha mãe cresceu no Explosivo, meus tios, então sempre escutei histórias do Explosivo, do Pé de Pombo.
Yama: Sem cerimônia, a vila criada nos anos 50 deixou de existir nos anos 70. A Companhia, ainda estatal, fortalecida em seu propósito desenvolvimentista da ditadura militar, iria começar um dos projetos mais destrutivos da história ambiental do Brasil: o projeto cauê. O mesmo que mudou a paisagem da cidade em definitivo, trocando um pico por um buraco de mais de 200 metros de profundidade. Como lembra José Miguel Wisnik, a maior das ironias que o Cauê dê nome à operação que causou seu extermínio. Do ventre da montanha foi tirado mais do que ferro. Entre outros muitos tecidos, mais e menos humanos, sucumbiu a Vila Sagrado Coração de Jesus, mais conhecida como Vila Explosivo. Aos moradores que permaneceram quando tudo já era mais precário do que nunca, somente um aviso – uma data final para deixar tudo para trás. Casas, vivências, histórias e tudo que foi construído ao longo de mais de duas décadas. Não houve qualquer indenização, mas a empresa pediu que seus trabalhadores, agora ex-moradores da Vila, buscassem novas casas na cidade, mais distantes das minas de hematita infinita. Mas como operários de baixos salários e trabalho precarizados comprariam casas? Pagando por elas por toda vida, por financiamento viabilizado pela Vale, descontado diretamente dos salários. A quem já tinha casa, vida e comunidade foi retirado tudo. Em troca, receberam uma dívida que muitas vezes sequer acabou antes que os trabalhadores morressem. Longe dali, no Rio de Janeiro, duas crias Itabiranas pareciam fugir de seu destino mineral em trocas públicas que duraram décadas. O poeta desencantado com sua cidade engolida pela mineração, e a sede da Vale do Rio Doce – que retirava tudo de Itabira e não devolvia nada. Se recusava até mesmo a estar presente na cidade onde nasceu. Se na poesia e nas páginas dos jornais Drummond não deixava descansar o descaso e a destruição de sua cidade natal, a Companhia não deixava por menos sua mais famosa persona non grata. Em anúncio publicado em 20 de novembro de 1970 no jornal O Globo, que divulgava a escala faraônica do Projeto Cauê, não restava dúvidas sobre quem era o inimigo número um da estatal. Dizia o anúncio em letras garrafais: Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro.
[ Transição – trem 2]
Fernanda: Nem haveria propriamente triunfo: ninguém quis derrotar a Cia. Vale do Rio Doce. O que se passou foi um desses episódios da crônica familiar, em que um dos cônjuges, por muito amar o outro, reclama contra sua falta de assiduidade, e vai buscá-lo no bar ou à mesa de buraco, onde ele permanece indefinidamente, esquecido de que seu lugar é na poltrona caseira, junto ao primeiro cônjuge e aos filhos. A Vale do Rio Doce levou a ausência a um ponto intolerável; gostou loucamente do Rio de Janeiro, e quase não se lembrava mais de que era uma senhora casada com o povo de Itabira.
Correio da Manhã, domingo, 17 de julho de 1955.
Yama: Em seguida, converso com o Lucas sobre direito à cidade e suas motivações como pesquisador e como militante para pesquisar Itabira. Depois, recupero trechos de nossa conversa sobre a Vila Explosivo. E por fim, refletimos um pouco sobre o momento atual e como a experiência de Itabira com as remoções e com o terrorismo de barragem tem a ensinar pra gente sobre as práticas de mineração no Brasil.
[ Transição – trem 1]
Yama: Lucas, vamos começar contando pros nossos ouvintes como que você começou a trabalhar com violação de direitos. Advocacia popular não parece uma escolha óbvia para recém-formados em direito, né?
Lucas: Acho que é uma escolha de vida, né? Eu falo não é do direito, de advocacia em específico, mas é uma escolha de vida… a luta política, então a advocacia popular veio nesse lugar.
Yama: Aham. E porque você fez essa escolha?
Lucas: Após formado, eu tive um contato com um do trabalho mais rígido do escritório, eu vi que não era aquilo que eu queria, fui para a advocacia popular atuando com violações de direitos humanos, né? Então atuei com desde violações de direitos humanos no sentido distrito da coisa, né? No penal, prisional e sobretudo aí na questão da terra, que era algo que sempre me despertou. Então, assentamentos rurais, ocupações, fazendo a defesa que nem sempre a Defensoria dá conta, e além da Defensoria não dar conta de ter também uma interlocução e sobretudo uma construção com as lutas populares, assim.
Yama: O Lucas além de advogado e pesquisador no campo de direito à cidade, é militante do PSOL de Belo Horizonte. A pesquisa de mestrado dele, que ganhou o prêmio de dissertações da UFMG, foi o que deu origem ao livro Entre a Vila e a Mina, sobre o qual a gente tem falado. Continuando a conversa, eu perguntei pra ele sobre como ele deu prosseguimento à pesquisa no doutorado e porque decidiu continuar pesquisando Itabira.
Yama: Você continuou com a pesquisa em Itabira no doutorado…
Lucas: É uma questão socioambiental que é muito gritante, no caso de Itabira, que a gente começa a se questionar e que nos afeta no sentido do afeto. Então, no doutorado da continuidade dessa pesquisa de violações de direitos, no caso de Itabira e do quadrilátero que alguns movimentos chamam de quadrilátero aquífero, porque mineração só é possível com água e é onde tem as maiores reservas de água do estado de Minas Gerais. Então, é isso, pesquisador hoje dessa linha de território, direito à cidade, territórios, da Faculdade de Direito da UFMG.
Yama: Eu queria que você falasse um pouco sobre direito à cidade. Acho que muita gente não sabe o que é. Das muitas definições possíveis né?
Lucas: Mas tem uma definição, Yama, do David Harvey, que acho que é muito interessante, que coloca assim, o direito à cidade é mais do que uma liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos. É um direito de mudar nós mesmos, mudando a cidade. E aí ele leva para uma esfera de um direito coletivo, não é individualizado, não é só ter acesso à água, à esgoto, a participar do processo deliberativo. Ele coloca no sentido que se o homem está condenado a viver na cidade porque ele criou, modificando essa cidade, ele refaz a si mesmo. Então, a gente coloca também a liberdade de fazer e refazer a nossa cidade como se fosse algo de refazer a nós mesmos. Então, é um direito humano muito precioso que ao mesmo tempo é negligenciado.
Yama: O David Harvey que o Lucas citou é um geógrafo inglês e um dos maiores intelectuais da geografia urbana do mundo. Ele é professor de antropologia e geografia na Universidade de Nova Iorque.
Pensando em direito à cidade nesses termos… um dos conflitos que envolvem Itabira tem relação com a baixa autonomia das cidades em relação aos estados quando se trata de mineração e outros problemas socioambientais.
Lucas: Isso, exatamente.
Yama: Porque ocorrem esses problemas no âmbito dos licenciamentos, por exemplo?
Lucas: O licenciamento, tem uma autorização no âmbito municipal, mas o licenciamento é feito no âmbito estadual. Tem um sistema que chama CODEMA, que dá essas diretrizes, são diplomas nacionalizados, mas quem decide mesmo, quem opera ou deixa de operar, é o COPAM, que é o Conselho Estadual. Acaba que o município tem muito pouca autonomia de fazer esse contraponto. Acho que, por exemplo, o que a gente tem na Serra do Curral de Belo Horizonte. Acho que para quem não conhece, da mineração que foi autorizada na Serra do Corral, foi uma reunião do COPAM, que foi aprovada, uma reunião online, na madrugada, que foi aprovada… o município mesmo era contrário, tinha vários pareceres, um posicionamento até da administração pública municipal, contrário ao empreendimento, ele foi aprovado da mesma forma. Então, acho que isso demonstra, da fragilidade e da pouca autonomia que o município tem em relação à mineração.
Yama: Para além das particularidades legislativas que dificultam com que municípios a conseguir proteger as cidades de impactos ambientais, situações como a que Lucas descreveu que aconteceu em Belo Horizonte demonstram a importância da organização política para pleitear pautas ambientais junto ao poder público. Você já se perguntou quais os planos dos políticos que você votou para as barragens de rejeitos presentes e futuras? Será que algum deles recebeu financiamento de campanhas de mineradoras?
[ Transição – trem 2]
Fernanda: Casa para empregado nunca foi benefício coletivo; é, no máximo, individual, ditado pelo próprio interesse da empresa. Toda organização de vulto constroi essas moradias, como dá escola aos filhos de seus auxiliares. É despesa a incluir no custo operacional. (…)
Grande serviço à cidade, que do contrário talvez se visse compelida a fazê-lo. Esta a concepção que a Cia. tem do patronato e dos direitos sociais do trabalho. Quero apenas ver a Cia. cumprir seus deveres sociais, pois não é uma empresa particular de comércio, mas uma obra pública, inspirada em alta concepção política de eliminação dos índices subumanos de vida no interior; e é uma obra formada em magna parte com capital da União e alimentada pelas jazidas de minha terra. (Pausa)
Não adianta dizer que 70% da população de Itabira vive em função das atividades da Cia. Responderei que 100% da Cia., inclusive a Estrada de Ferro Vitória a Minas, vive em função de Itabira.
Correio da Manhã, 12 de junho de 1955.
[ Transição – trem 2]
Yama: Neste bloco recupero alguns trechos da conversa com o Lucas em torno da Vila Explosivo.
Vamos começar do começo. Me fala da formação da Vila, nos anos 50.
Lucas: A Vale foi construída com base do que chamam dos leões da Vale, era um trabalho muito braçal, muito degradante mesmo, e depois entrou esse processo de dinamitação, feito com as explosões, um processo muito arcaico, e a vila operária tinha que ficar perto da mina para facilitar, para ficar à disposição, e também alienado também de outras possibilidades. Então esse nome é por causa dessa proximidade, por causa desse processo que acontecia, da mineração de explosões.
Yama: Qual era o perfil dos moradores de lá? Quem foi morar na vila?
Lucas: Era uma vila operária de trabalhadores da Vale, de um período que a Vale não era tão mecanizada, então as pessoas que vêm são dos distritos e dos municípios ao redor, então tem um perfil de um povo que tem relação com a terra, de povos campesinos que vêm do interior. E aí é uma vila de casinhas, com quintal, com espaço comunitário, tem uma relação também, uma tentativa da relação da Vale, na época ainda estatal da companhia da Mãe Vale do Rio Doce, deu casa, a Mãe Vale deu casa para os trabalhadores, deu onde morar.
Yama: E o que motivou a pesquisar essa vila em específico? Remoções de bairros e vilas são episódios relativamente comuns na história da Vale. Até hoje.
Lucas: O Explosivo, além dela ser uma primeira vila operária da Vale, muito emblemática, porque ela cedeu espaço para a mina do Cauê, inclusive do Pico do Cauê, Famigerado, etc., que está na poesia do Drummond, que não existe mais. Tem uma relação familiar também. Meu avô foi um dos moradores da vila do Explosivo, do Pé de Pombo, minha mãe cresceu no Explosivo, meus tios, então sempre escutei histórias do Explosivo, do Pé de Pombo. Isso é muito curioso, porque ao mesmo tempo que tem um saudosismo, tem em partes uma vergonha de um passado pobre mesmo, com poucos acessos.
Yama: O nome explosivo começou como nome pejorativo e acabou ficando né? E revela um certo conflito social entre os moradores mais centrais de Itabira.
Lucas: O tormento de lidar com isso, das explosões, deu o nome da vila, o apelido da vila explosiva, que na verdade ela se chama Sagrado Coração de Jesus, então popularmente ficou conhecido como explosivo, que já era um nome pejorativo. Aí a cidade legal chamou os habitantes de pé de pombo, porque é uma cidade que se chama de Santa Maria de Itabira, e a cidade legal chamou os habitantes de pé de pombo porque é um pé vermelho, em alusão à terra. Enfim, então você não tem direito à memória a esse território, é um território hoje
pertencente à companhia, era companhia antes, a Vale S.A., pertence aos acionistas da Vale.
Yama: Você falou aí de pé de pombo. Conta pro pessoal que ainda não leu o livro o que era isso?
Lucas: É um lugar precário, então as pessoas para ir à escola, para ir aos bares, escutei muito isso no relato, da pessoa ter dois sapatos, levar um sapato na bolsa assim e chegar perto do local trocar, porque o pé de pombo é referência à terra, o pé de pombo é a terra, levar um sapato na bolsa assim e chegar perto do local trocar, porque o pé de pombo é referência à terra, a terra vermelha. Então é o paninho molhado para passar, para não ficar aparecendo a poeira ali, o trem vermelho e identificar a pessoa, fulano é do pé de pombo, fulano na verdade é operário da Vale, filhos de operário da Vale, como se fosse algo a se envergonhar de morar de favor pela mãe doce num lugar mais afastado.
Yama: E como que sua família chegou lá?
Lucas: Meu avô, ele vem de uma comunidade que chama Morro de Sant’Antônio, pertence à Santa Maria de Itabira, que é ali no entorno, hoje é uma comunidade quilombola, e minha avó é da comunidade que chama Os Gatos, eu nem sei o nome oficial dos gatos, mas era um distrito, são duas vilas campesinas. Meu avô era “amansador de burro”, quando eles casaram precisava de emprego formal, surgiu o boato na região que tinha oportunidade de emprego formal, então foi. Estou dizendo isso para mostrar que tem um perfil de pessoas campesinas que foram morar ali na vila, era uma vila operária mesmo, de trabalhadores da época companhia Vale do Rio Doce. Então eles eram trabalhadores mesmo da Vale, de baixa hierarquia, digamos assim, que tinha a vila operária, a vila engenheira também, na cidade, tem os locais que eram bem diferenciados e fragmentados.
Yama: Uma característica bastante particular do explosivo e que acabou dando a tônica de seu desmembramento é que as casas sempre pertenceram à Vale. Nunca foi oficialmente de seus moradores. Quando chegou a hora desocupar aquele território pra mina expandir, já na implementação do Projeto Cauê, não foi só o pico da montanha que se dissipou. Mas as vidas de muitas pessoas como as que moravam na vila Sagrado Coração de Jesus. Quando a gente pensa nisso, aquele verso do Drummond onde ele diz que “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê” ganha novos sentidos
O que você pode me dizer do processo de remoção das pessoas e da posterior destruição da vila? Pra onde foram os moradores do explosivo?
Lucas: Essa vila foi vila durante muitos anos, ela tem uma diáspora, cada um vai para um canto da cidade, e ainda esse trabalhador que é removido, ele fica endividado com a própria Vale. Na verdade a Vale lucra duas vezes, além de remover e expandir a mina, endivida o trabalhador com o programa de crédito dela para comprar a moradia dela. E é muito doido que tem relatos que assim, eu mudei, a Vale me ajudou a financiar e eu paguei a casa inteira, teve gente que morreu e aí tá quitado, porque como é o financiamento com banco, deve ter algum
tipo de seguro, mas ainda assim as pessoas diferenciam, quem faleceu e não teve que continuar pagando e aquele trabalhador que sobreviveu, que pagou a vida inteira esse financiamento que era descontado em folha. Então na verdade era a garantia que a Vale vai receber, o desconto na sua folha salarial, esse financiamento imobiliário e é isso.
Yama: A casa não era das pessoas, né? Então elas próprias foram convencidas de que não podiam pleitear nada indenizatório, mesmo vivendo na vila por quase duas décadas…
Lucas: Essa relação se deu pelo fato de ser uma vila operária mesmo, construída pela Vale, reforça esse caráter que é ela que define quem mora, quem deixa de morar, que está fazendo uma concessão, que não seria obrigado, enfim. As pessoas tinham um direito de uso, parece que não tinham a propriedade da vila, então meio que você fica com uma dívida de gratidão, a mãe doce te dá um lugar para morar, então você tem uma relação de favor, você acha que é algo que estão te fazendo, você ter uma moradia, então não tinha uma relação de
enfrentamento.
Yama: E como as pessoas ficaram sabendo que teriam que sair de lá?
Lucas: Falam que começou um boato que o pessoal teria que sair, não teve uma negociação, a pessoa tem que sair até tal dia, e aí vocês podem olhar um lugar para vocês morarem na cidade, que a Vale vai te ajudar a apagar esse lugar, então as pessoas saíram muito tranquilos, se não a Vale vai me ajudar a apagar um lugar que é meu, que esse lugar aqui era a Vale, então a relação da vila era como se a vila fosse da Vale mesmo.
Yama: Eu depois perguntei pro Lucas sobre a memória da vila. Se os moradores que ele entrevistou tinham saudades de lá ou se acharam melhor ir para as partes mais centrais de Itabira. Ele me disse que tinha uma dualidade – tem saudade mas tem graças a deus que saímos do pé da mina também
Lucas: É essa dualidade, ao mesmo tempo que é lembrado os perrengues, o reforço dos estigmas, como era difícil o acesso de determinadas coisas, é muito lembrado também a relação comunitária de vizinho, da relação que tinha com o vizinho, que se autoajudavam. De às vezes ter fulano convivendo aqui em casa porque fulano ia trabalhar fora, então de ter as festas também dentro da própria comunidade, de ter uma relação de amizade, de brincadeira entre as crianças, então você vê que também tem um sentimento de pertencimento de comunidade muito forte, e das manifestações que tinha no Explosivo, acho que nunca teve um… é sempre um… “Ah! Era foda ser pé de pombo, mas era gostoso demais”, as pessoas gostavam de morar ali, mas não gostavam quando contrastavam com a cidade.
[ Transição – trem 2]
Fernanda: Perdoem os possíveis leitores desta coluna se o cronista às vezes municipaliza demais e parece dirigir-se apenas aos homens e mulheres de sua paróquia. Mas êste caso do ferro de Itabira é muito menos paroquial do que se supõe a um exame rápido. É o caso típico de um aspecto da economia brasileira, ao longo de nossa história: a exploração sôfrega e inumana de riquezas minerais, para alimentar uma civilização de côrte e de litoral, com sacrifício completo da população do interior.
Sempre se chamou a indústria da mineração de “indústria ladra” porque ela tira e não põe, abre cavernas e não deixa raízes, devasta e emigra para outro ponto. Se em Ouro Preto o ciclo do ouro deixou algumas alguns monumentos que nos comovem e orgulham, a verdade é que a região em volta desenha um mapa de ruínas, e a própria Ouro Preto não tem dinheiro para cuidar de suas igrejas velhas. O que Minas perdeu em ouro chegaria para cobrir de Alhambras cidades que hoje portam a sua miséria, uma prostração intermediária entre sono, indiferença e morte.
Correio da Manhã, quinta-feira, 16 de maio de 1957.
Yama: No dia 17 de novembro de 2023, saiu uma notícia no jornal mineiro O tempo. É uma notícia, mas parece um filme de terror. O jornal anuncia que a Vale fará treinamentos com itabiranos para o caso do rompimento de alguma das cinco barragens que estão bastante próximas da cidade. Somente uma delas, a Sistema Pontal, tem um volume de quase 4 vezes ao que havia na barragem de Fundão, que se rompeu em Mariana. Ela é considerada de Alto
Risco. O treinamento se dará simulando uma situação que pode acontecer a qualquer momento. Quando as sirenes tocarem, os moradores devem deixar tudo para trás e seguir as placas que indicam a melhor rota de fuga. Em outros termos: a remoção forçada pode vir para aumentar a área de exploração, como foi com o Explosivo, mas também se faz presente no constante medo de que a cidade possa ser tomada de lama a qualquer momento. Em cinismo característico, na comunicação da empresa, a Vale diz que “não há qualquer sinal de risco, mas que os treinamentos são para promover uma cultura de prevenção”.
[Explosão 2]
Yama: Apesar de ter muita atividade minerária ainda acontecendo em Itabira, tal como boa parte de Minas Gerais, um problema central são as barragens.
Lucas: Hoje tem uma coisa que a gente até chama de terrorismo empresarial de barragens, que é diante da eminência de rompimento, você dispara a sirene e manda as pessoas saírem de casa. A princípio seria temporariamente, mas tem vários relatos que nem sempre são temporariamente. O caso de uma cidade vizinha de Itabira, Barão de Cocais, é exemplo disso. Mas em Itabira tem duas comunidades que passam esse terrorismo com alguma frequência, que é o Boa Vista e a Pedreira. Tem situações parecidas que vivem esse conflito. Hoje a
configuração é diferente, não é a remoção explícita para a expansão da atividade, mas diante de um risco que nunca é publicizado, que tem pouca transparência na gravidade desse risco, você tem treinamentos com a população para ir para… O nome formal é ilhas de inundação, não ilhas de auto-salvamento, mas são ilhas de desamparo, de caminhos para a morte, digamos assim. Mas essa é a relação hoje de algumas comunidades em Itabira.
Yama: Como as barragens de rejeito impactam o direito à cidade?
Lucas: Eu acho que a cidade é o palco dos conflitos, Itabira é a síntese disso, você tem um conflito: não é a cidade que foi invadida pela mineração, a mineração invadiu a cidade, então por isso que tem barragens perto de regiões urbanas, perto de populações, perto de comunidades, então você tem os efeitos disso, e efeitos diversos, seja da poluição atmosférica, seja de tremor de terra, seja de rachadura de casas, e seja mesmo do modo de vida que é totalmente alterado pela atividade. Então você tem essa situação que conflita com o modo de
vida das pessoas mesmo. As barragens são parte de um episódio de todas as marcas que a mineração traz. A atividade em si é violenta, quando a gente fala de extrativismo é extrair com violência. É diferente a relação que uma comunidade extrativista tem em relação a seringueiros, a catadores, a intensidade do volume. Barragens são um episódio das violências e das marcas que essa atividade traz para a cidade e para a população.
Yama: O que você acha que a experiência de Itabira com a mineração pode ensinar pra gente pensando no futuro da relação das cidades com a mineração?
Lucas: Eu acho que Itabira tem um caráter emblemático, o primeiro ponto é isso, de ser o berço da Vale, de ser uma atividade mais antiga, e aí comparar com as situações que acontecem não só em Minas Gerais, como em regiões portuárias, como a questão do Pará, Itabira foi um laboratório de testes para outras regiões mineradoras. E, sobretudo, a mineradora é que invade a cidade. É uma cidade que já tinha uma vida pulsante, ao seu modo, claro, então eu acho que pode ser, para além do estudo de caso em si, de ser um contra-exemplo… Itabira não é só a mineração, não é só a Vale, acho que isso é uma marca que a cidade tem, mas mostra, Itabira é um exemplo de uma cidade que tem memória, que tem povo, que tem multiplicidade e um tecido social muito heterogêneo, com várias experiências e modos de vida.
[Vinheta Oxigênio]
Yama: Eu sei que eu falei que a gente daria uma pausa com as poesias. Mas já fazendo uma ponte para o próximo e último episódio dessa série, eu queria deixar vocês com mais uma reflexão poética do Drummond sobre a marcha sem ré do progresso.
[ Transição – trem 2]
Fernanda:
Infatigável
O progresso não recua.
Já transformou esta rua
em buraco.
E o progresso continua.
Vai abrir neste buraco
outra rua.
Afinal, da nova rua,
o progresso vai compor
outro buraco.
[pausa em silêncio]
Este episódio foi roteirizado e produzido por mim, Yama Chiodi. A revisão foi da coordenadora do Oxigênio, Simone Pallone. Quem narrou os textos do Drummond foi a Fernanda Capuvilla e quem conversou comigo foi o Lucas Nasser.
Eu queria deixar um agradecimento ao site Vila de Utopia, que disponibilizou todas as crônicas do Drummond no Correio da Manhã e facilitou muito meu processo de pesquisa pra esse episódio.
A edição foi feita pela Elisa Valderano. O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp. Além disso, contamos com o apoio da FAPESP, que financia bolsas como a que me apoia neste projeto de divulgação do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT.
A lista completa de créditos para os sons e músicas utilizados você encontra na descrição do episódio.
Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e na sua plataforma preferida. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio! Aproveite para deixar um comentário.
Aerial foi composta por Bio Unit; Documentary por Coma-Media. Ambas sob licença Creative Commons.
Ambos os sons de trens utilizados nesse episódio foram feitos por Sandro Lima e são livres para uso.
Os sons de rolha e os loops de baixo são da biblioteca de loops do Garage Band.
Livro do Lucas Nasser: Entre a vila e a mina violações de direitos
Baixe gratuitamente em: https://experteditora.com.br/entre-a-vila-e-a-mina/
Neste quarto episódio, a Série Termos Ambíguos traz uma análise do termo Patriotismo, mostrando as interpretações que a extrema direita tem feito sobre o termo ao longo da história, e como ele foi incorporado ao discurso dos seguidores do bolsonarismo. Os entrevistados do episódio são Raquel Rodrigues, Adriana Marques e Odilon Caldeira Neto.
Daniel Faria: Nas ruas, nas redes sociais, em conversas de família… nos últimos anos, o Brasil assistiu ao ressurgimento de um sentimento nacionalista que ecoa por todos os lados. O termo patriotismo foi ressignificado e instrumentalizado para consolidar uma narrativa populista, conservadora e autoritária. Mas essa ideia de patriotismo, que para muitos soa como a defesa da pátria e dos valores morais, esconde um lado obscuro, que ameaça as instituições democráticas e fomenta o discurso da extrema direita.
Tatiane Amaral: Em 2018, o Brasil presenciou a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência, mas essa trajetória não surgiu do nada. Por mais de duas décadas, Bolsonaro foi uma figura à margem do debate político, com um discurso que atraía a atenção de uma parcela restrita da população. Contudo, foi durante o golpe de 2016, que destituiu a então presidente Dilma Rousseff, que Bolsonaro se aproveitou da polarização para se apresentar como uma alternativa ‘salvadora’. Sua retórica de patriotismo e ‘Brasil acima de tudo’ se tornou um chamado à ação oportunista, explorando o clima de incerteza política do país.
Daniel: Seu discurso era simples, direto, mas repleto de ideais fascistas. Deus, Pátria, Família e Liberdade. Uma retórica que atraía a atenção dos conservadores de extrema direita. O patriotismo, para Bolsonaro, se tornou um símbolo central de sua campanha, um emblema que evocava a “nostalgia” de um Brasil dominado pela Ditadura Militar de 1964. Esse período, marcado por repressão política, censura e tortura, é visto por alguns como um tempo de ordem e desenvolvimento, usando o patriotismo como justificativa para ações autoritárias. Essa visão romantizada do passado se entrelaça com a narrativa de Bolsonaro, que sugere que a defesa da “pátria” justifica medidas drásticas contra opositores, colocando o patriotismo acima da democracia e dos direitos individuais.
Tatiane: Mas o uso do patriotismo na retórica bolsonarista vai além de um simples sentimento de orgulho nacional. Durante e após a campanha presidencial de 2018, essa ideia foi instrumentalizada para estabelecer uma divisão clara entre ‘nós’ e ‘eles’. De um lado, os chamados ‘patriotas’, cidadãos que, na visão de Bolsonaro e de seus seguidores, defendem os valores tradicionais da nação. Do outro, a oposição, representada por um imaginário comunista e partidos de esquerda, rotulados como ameaças aos pilares do país. Nesse contexto, a narrativa bolsonarista distorce a noção de patriotismo, colocando-a como um escudo contra aqueles que desafiam sua visão de Brasil
Daniel: Pra você que ainda não nos conhece, eu sou o Daniel.
Tatiane: E eu sou a Tatiane, e esse é o quarto episódio da série Termos Ambíguos, que apresenta a cada episódio um termo popularizado no debate público pela extrema direita. Esses termos são analisados pela publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia”.
Daniel: Esse podcast é uma parceria entre o podcast Oxigênio, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp, e o Observatório de Sexualidade e Política, o SPW, na sigla em inglês. Aqui vamos explorar termos que estão muito presentes no nosso dia a dia, mas principalmente no debate político atual. E como vimos na agora, o tema de hoje é PATRIOTISMO.
Tatiane: Mas, de onde vem realmente esse conceito? Como essa ideia de patriotismo foi moldada ao longo da história, até se tornar um dos principais pilares da retórica da extrema direita?
Para entender o que significa ser patriota no mundo contemporâneo, é importante voltar à origem desse termo. Afinal, o que é realmente o patriotismo?
Raquel Rodrigues: O termo patriotismo é um termo de origem grega a parte da pátria na palavra grega, ela tem ali a pátria e pai dentro da pátria. E o mais importante é que ele nasce como um termo de lealdade à República.
Tatiane: Essa é a Raquel Rodrigues, autora do verbete sobre patriotismo no dicionário de Termos ambíguos, explicando como o conceito foi construído historicamente.
Raquel Rodrigues: O termo vem da palavra grega patriotas, que é composta por pátria externa, que também vem de pater, pai, Na Grécia, Roma, era associado à lealdade à polis, à República. O apego ao bem comum, as leis de em termos de direitos e a organização da sociedade. E depois ele renasce nas repúblicas autônomas italianas do século 15, e ganha novos contornos a partir do século 18 com o estado de nação se tornando um modelo universal de gestão da vida política.
O Rousseau associou patriotismo e nacionalismo à valorização de traços de uma nação, tanto políticos, culturais como étnicoraciais. mas, como a gente sabe, esse termo foi apropriado e invocado por ideologias muito diferentes.
A gente vê que existe muita contradição ali. As pessoas que se dizem patriotas, mas se colocam contra uma boa parcela da população, e eles querem se diferenciar. O patriota é um cidadão de bem porque o cidadão de bem, ele aglutina várias coisas, uma dessas coisas é essa característica, essa faceta, é patriota, né?
Mas a gente tem um histórico no Brasil. De um nacionalismo, de um patriotismo lá desde dos integralistas.
Daniel: O integralismo foi criado nos anos 1930 por um grupo de intelectuais e um dos seus maiores expoentes foi Plínio Salgado, jornalista e escritor de formação católica muito forte. Após viajar para a Europa e conhecer Mussolini, Salgado trouxe ao Brasil uma versão adaptada do fascismo italiano. Ele acreditava que a pátria deveria estar acima dos conflitos de classe e das divisões políticas, promovendo um nacionalismo forte, com inspiração na religião e na ordem social rígida.
Raquel Rodrigues: Com o lema Deus, pátria e família. O mote deles tem a pátria ali no meio, junto com com Deus e família e no próprio militarismo. Um dos slogans da ditadura militar era “Brasil, ame ou deixe-o”. É o slogan do Bolsonaro para se eleger é que era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” também inspirado num lema nazista, alemão de deutschland, “O alemão acima de tudo de todos”.
Tatiane: Com seu discurso, os militares buscavam não apenas um amor incondicional à pátria, mas também a exclusão de qualquer crítica ao regime. Ao colocar o amor à nação acima de tudo, o slogan reforçava a ideia de que quem não se alinhava aos interesses do governo não merecia estar no Brasil.
Daniel: Assim, a noção de patriotismo se transformava em uma ferramenta de controle social, onde o questionamento das políticas do governo era interpretado como um ataque à pátria. Essa retórica não apenas se perpetuou na memória coletiva, mas também encontrou eco nas campanhas contemporâneas, como a de Bolsonaro, que reutiliza esse discurso para consolidar sua base de apoio
Tatiane: Mas nem sempre a definição desse tipo de ideologia poderia ser chamada de patriota. O historiador e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Odilon Caldeira Neto, explica que a definição, na verdade, seria nacionalista:
Odilon Caldeira Neto: O termo nacionalismo, ele era preferido ao termo patriotismo, eventualmente patriota dava uma tonalidade de pouco índice de politização. Mas porque o termo nacionalismo, ele trabalha fundamentalmente qual a dimensão da formação dos estados nacionais. Com a dimensão da existência de um estado burocrático, centralizador. E o termo patriotismo ou pátria, né? Por definição, ele tem uma relação com a dimensão da da origem; como a origem de, digamos, inclusive de traços com traços familiares.
Mas o termo patriotismo de fato, ele começa a ser intensamente utilizado no campo da extrema direita me parece que, sobretudo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A gente precisa situar que o nacionalismo se torna efetivamente um problema no sentido da arena política Internacional após o fim da Segunda Guerra Mundial ou mesmo antes do início da Segunda Guerra Mundial No contexto da emergência dos regimes autoritários, das ideologias políticas extremadas à direita, que tinham o nacionalismo como carro chefe, como eixo fundamental da estrutura de uma dimensão mítica e salvacionista da identidade nacional.
Ou mesmo do ponto de vista da organização da sociedade. Então, grupos, entidades, organizações não tinham o termo nacionalista como um problema. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, depois dos resultados efetivos das ideologias ultranacionalistas, o termo nacionalista cai em desuso, não é? E aqui também ele cai em desuso e cai também em desuso grande parte de alguns dos elementos basilares das ideologias políticas do século 20, da extrema direita.
Tatiane: Está aí uma grande confusão, o termo patriotismo passou a ser mais utilizado nos discursos da extrema direita, especialmente para justificar ações ultranacionalistas. E isso se mistura com o mundo dos militares.
Adriana: É quando a gente leu o material produzido pelos militares, os documentos militares, os documentos doutrinários. Eles têm alguns códigos de valores que eles chamam de valores militares e entre os valores militares, um dos valores é o patriotismo, que eles definem como amor à pátria. E esse amor à pátria faria com que eles se empenhassem na defesa do território, da soberania e também em garantir a paz social. E isso está no hall dos valores militares. Essa ideia de que os patriotas são os que amam a pátria e são capazes de dar a vida por ela acabou se estendendo para outros grupos sociais que se identificam com essa mentalidade militarista.
Daniel: Essa quem acabamos de ouvir é Adriana Marques, Professora de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Coordenadora do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa. Ela continua explicando:
Adriana Marques: Eles se veem como os tutores da República brasileira. Os defensores dos valores que seriam, os verdadeiros valores é nacionais. Então a gente pode olhar a recuperação do termo patriota também acompanhando essas percepções militares, essa visão de que há uma conexão muito estreita entre a ideia de patriotismo e a ideia de tutela da República no imaginário militar.
Tatiane: Voltando ao contexto atual, Raquel Rodrigues aponta como os símbolos patrióticos, como a camisa da seleção brasileira, estão sendo reapropriados por outros grupos sociais, desassociando-os do bolsonarismo.
Raquel Rodrigues: A camisa da seleção pra população em geral, né? Pra outras pessoas, além dos eleitores do Bolsonaro. E agora eu acho que teve um Marco com o show da Madonna. Teve a participação da Pabllo Vittar usando a camisa da seleção e na parada gay agora, em São Paulo, que a Pablo usou de novo a camisa, tinha um bocado de gente com ela. Então já está tomando novos rumos, né? Que a gente vê de reapropriação, distribuição desses símbolos por por mais gente. Por gente bem diferente do que aqueles que queriam se distanciar.
Daniel: Desde 1945, o discurso dos grupos de extrema direita mudou. Esses grupos começaram a pensar as comunidades nacionais de forma que o patriotismo não está apenas ligado a fronteiras ou questões burocráticas do Estado. O conceito de pátria, para esses movimentos, se tornou uma questão de valores culturais e identitários compartilhados, algo que vai além do simples local de nascimento. Odilon tem uma leitura sobre a noção de pátria para essas pessoas:
Odilon Caldeira Neto: A pátria ela não é apenas o local de nascimento, embora também seja uma questão importante. Mas pátria vai ser, em muitos casos, um sinônimo, e o cidadão da pátria sobretudo, vai ser um sinônimo do que eles entendem como cidadão de bem, que vai estabelecer a defesa de uma verdadeira nacionalidade.
O que é sobretudo para esses grupos, para as tendências da extrema direita, a pátria e o patriotismo, é a exaltação daquilo que esses grupos definem como os valores fundamentais daqui,o que seria em síntese o verdadeiro caráter da identidade nacional desses determinados locais.
Tatiane: Isso nos leva a uma questão importante: quem, afinal, define o que é a pátria? Em muitos momentos da nossa história, especialmente na ascensão do poder militar durante o período ditatorial, vemos que são os próprios militares que se colocam como intérpretes e defensores dos anseios da pátria, independentemente de estarmos em uma democracia ou em um regime autoritário. A professora Adriana Marques entende a posição dos militares nessa questão como fundamental para entender esse contexto.
Adriana Marques: São eles que definem o que é a pátria. Então são eles que definem o que é o patriotismo. É, essa é a questão, como é um termo ambíguo, é um termo que o conteúdo, na verdade é dado por quem o utiliza Isso faz com que independa de uma defesa da democracia ou de um regime autoritário, porque são os militares que interpretam, né? Quais são os anseios da pátria, né? Eles são os definidores e os tradutores desses anseios.
Raquel Rodrigues: É uma composição identitária controversa. Eles alegam que amam o Brasil, mas há uma série de contradições nesse discurso. Eles querem direitos e privilégios apenas para os que consideram ‘cidadãos de bem’.
Daniel: Apesar das confusões e incoerências de alguns, existe alguma norma comum por parte desse setor da extrema direita e no modo como o uso do conceito de patriotismo é apropriado por eles, indo além das questões territoriais e envolvendo ideias de identidade nacional, como explica Odilon Caldeira Neto.
Odilon Caldeira Neto: O que define pátria para esses grupos de extrema direita, e mais do que isso o que define o patriotismo para esses grupos de extrema direita. Ele não está ligado exclusivamente a questões associadas às dimensões burocráticas ou mesmo territoriais do estado dos estados nacionais, também pode estar associada a partir de questões como imigração e assim por diante, mas além dessas questões me parece que pátria, num sentido no léxico, num sentido do uso para grupos e tendências da extrema direita é a defesa de um tipo de indivíduos é que fazem parte daquela comunidade tida como legítima para embarcar, se apropriar e disseminar um valor de identidade nacional constituída.
Tatiane: Além do patriotismo, outro aspecto central na ideologia da extrema direita é o culto ao militarismo, que ressurge periodicamente, especialmente com a ascensão desses grupos, como detalha a professora Adriana Marques.
Adriana Marques: Nós temos ondas de militarismo que acontecem de tempos em tempos. A gente vive uma onda militarista onde esses valores militares passam a ser cultuados pela extrema direita, né? A extrema direita tem tido uma ascensão nas últimas décadas e a extrema direita tem valores do militarismo. Agora, no que diz respeito às forças armadas brasileiras, esses são sentimentos como eu disse, que existem dentro das forças armadas e de tempos em tempos eles são ativados. Então a gente teve o ativamento desse sentimento de que os militares são tutores da pátria e publicamente, com um movimento político que atribuía aos militares também essa função.
Daniel: Outro ponto importante no discurso da extrema direita é a maneira como a religião é utilizada para reforçar seus valores. Essa estratégia tem raízes históricas no Brasil e continua a ser adaptada no cenário atual.
Odilon Caldeira Neto: No caso bolsonarista, existem algumas continuidades,sem dúvida alguma, existem algumas continuidades. A questão de apelo ao discurso religioso me parece que é um elemento que a gente pode traçar como elemento de continuidade. Não é à toa, inclusive, que o lema que outrora foi de propriedade dos integralistas, ele é depois apropriado e rearticulado por grupos bolsonaristas. Não é inicialmente como Deus, pátria, depois como Deus, pátria, família e Liberdade. Mas além dessa questão das continuidades, eu acho que é importante situar também que há algumas diferenças. O sentido de religiosidade, que era a noção de Deus para os integralistas, mais do que a noção de Deus, mas sim a prática dessa exaltação de Deus e do cristianismo para os integralistas era uma noção de um catolicismo, de um catolicismo conservador né com a presença da Igreja católica dos setores conservadores da Igreja Católica no cotidiano brasileiro, seja na dimensão religiosa mas também na dimensão política.
Tatiane: Uma estratégia recorrente da extrema direita é promover um clima de medo e insegurança, exagerando supostas ameaças à moralidade e aos valores tradicionais. Esse tipo de discurso busca mobilizar seguidores em torno de pautas conservadoras, como avalia Raquel Rodrigues.
Raquel Rodrigues: Eles usam muito a estratégia do pânico moral para atrair essas pessoas para esse lado com esses valores morais cristãos né conservadores com base na ameaça comunista, a ameaça trans, essas pessoas que vão por exemplo, doutrinar os filhos delas em ideologia de gênero. Porque estão querendo transformar as crianças todas em trans, para depois recrutar para a luta LGBTQ eles fazem toda uma campanha antigênero, né? É para que não se fale disso nas escolas.
Daniel: Embora a extrema direita se apresente como defensora fervorosa da pátria e dos valores nacionais, suas ações muitas vezes contradizem esse discurso. Raquel Rodrigues entende que líderes que exaltam o patriotismo podem, ao mesmo tempo, demonstrar uma admiração excessiva por potências estrangeiras ou mesmo buscar refúgio fora do país quando as circunstâncias políticas não lhes são favoráveis.
Raquel Rodrigues: A gente não pode rir de coisas que são muito sérias às vezes, mas a gente tem que se segurar muitas vezes. Porque o Bolsonaro mesmo falava o slogan dele de Brasil acima de tudo e batia continência para para Bandeira dos Estados Unidos, né? O próprio Olavo de Carvalho, é que era uma inspiração, do Bolsonaro e do bolsonarismo e dizia que ia ser enterrado no Brasil e foi enterrado lá na Virgínia, nos Estados Unidos. Então é uma de muitas contradições, né? Eles, Ah, eu amo o Brasil, mas se o PT ganhar, eu vou me exilar, auto exilar nos Estados Unidos. Então eles têm uma uma série de contradições nesse sentido. Eles gostam de acho que de algumas do país, né? e eles querem, que eles só para eles, né? O projeto de nação deles, os direitos para eles, que são cidadãos de bem, esses patriotas, né? E para o resto, se o estado é prover, aí é um disparate, é uma um privilégio, né? Que está sendo dado quando não é pro tal do patriota, cidadão de bem”.
Tatiane: Agora, vamos explorar as divergências entre o discurso bolsonarista e o integralista, especialmente no que diz respeito ao papel do Estado na formação da identidade nacional. O bolsonarismo traz uma ênfase na livre iniciativa e na rejeição da presença estatal, contrastando com ideias anteriores de nacionalismo que exaltavam a atuação do Estado. Odilon Caldeira Neto comenta essa mudança e o impacto disso.
Odilon Caldeira Neto: Estabelece algum ponto de divergência entre o discurso bolsonarista e o discurso integralista. E um outro elemento que acho que é possível situar essa questão é a questão da exaltação do próprio estado. O discurso bolsonarista do próprio Jair Bolsonaro e de figuras expoentes do bolsonarismo passam a exaltar a figura da livre iniciativa, a figura do self made man e assim por diante. E passa a estabelecer um discurso contrário à presença do estado, né, na dimensão da formação da identidade nacional. Não somente do ponto de vista produtivo, digamos assim, da regulação das leis de trabalho, dos impostos e assim por diante. Mas também do sentido que se dá a própria, a próprio papel da da nacionalidade. Então essa noção de Liberdade que é colocada é pelo bolsonarismo e por setores do Bolsonarismo, eventualmente ela vai se ligar a questões da educação.
Daniel: A construção da identidade nacional muitas vezes envolve processos políticos complexos e negociações que podem levar à exclusão de certos grupos. Adriana Marques discute como o acomodacionismo político durante a transição para a nova República influenciou a formação da identidade nacional no Brasil
Adriana Marques: Ah, definitivamente nós pagamos o preço do acomodacionismo político. É o nosso processo de transição foi um processo negociado, entre quem comandava o regime militar e os políticos que assumiram, né? E que construíram a nova República. A nova República foi construída a partir dessa acomodação entre as forças armadas e os setores políticos.
Tatiane: A ideia de identidade nacional também pode ser usada para justificar ações que vão contra os princípios democráticos. Raquel Rodrigues explora como certos grupos utilizam símbolos patrióticos para promover visões excludentes e políticas antidemocráticas, criando uma imagem controversa e até caricata do patriotismo.
Raquel Rodrigues: Essas coisas se confundem muito, tem um monte de monarquista patriota, cidadão de bem. É uma composição identitária um bocado problemática assim e controversa. […] Essa composição, essa identidade é um conjunto de visões excludentes de poder e política. De como pode se organizar no Brasil e com valores morais que eles consideram superiores, né? Então, acabam achando que isso, esse manto do patriotismo, do patriota, acaba justificando para eles ações e pautas antidemocráticas. Tanto que eles foram aqueles que incitaram ataques a instituições democráticas, que invadiram o STF, E que acreditavam que iam conseguir é inviabilizar as eleições.
Daniel: Quando exploramos o tema da repressão e do revisionismo histórico, a maneira como a extrema direita lida com a questão indígena revela uma complexa rede de contradições e estratégias discursivas. Odilon Caldeira Neto analisa como o mito da democracia racial é utilizado para rejeitar políticas de reparação e cotas, enquanto a abordagem em relação aos indígenas apresenta uma mudança significativa. Ele destaca como, no passado, os integralistas idealizavam a figura indígena, ao passo que o bolsonarismo e o pensamento militarista atual frequentemente os veem como inimigos potenciais, desassociados do desenvolvimento capitalista e alvos de perseguição e importunação. Essa transformação reflete a tensão entre diferentes correntes do nacionalismo e o revisionismo histórico.
Odilon Caldeira Neto: A questão indígena também, eu acho que é uma questão bem interessante. É claro que, de fundo, o discurso do bolsonarista médio ou não, ou do bolsonarismo e os seus expoentes vai transitar muito em torno dessa base comum do mito da democracia racial brasileira. Sem dúvida alguma, o mito da democracia racial brasileira vai, em alguma medida, justificar a utilização desse mito com uma estratégia discursiva contra as políticas de reparação, políticas de cota e assim por diante. Então ele é um contínuo. Mas a questão indígena eu vejo com uma certa disparidade do sentido que é dada da noção da nacionalidade brasileira. Os integralistas, de uma maneira ou de outra, exaltavam uma figura do indígena. Claro, é um indígena idealizado, mas existia uma exaltação. A figura do indígena em peças de propaganda, é, fotografias de indígenas fazendo a saudação integralista, a presença de alguns indígenas nas chamadas fileiras do sigma, e o próprio lema integralista, né? O seu principal brado era anauê, que é uma saudação oriunda do do Tupi Guarani.
Então essa questão se perde, inclusive porque embora possamos traçar uma linha que pode em alguma medida é ligar o bolsonarismo ao integralismo há outras correntes que estabelecem é formas de alimentação, que alimentam o nacionalismo ou o patriotismo bolsonarista né. E a questão militar aqui é fundamental, né? Então a relação de como que os militares antes, durante sobretudo, mas depois da ditadura civil-militar brasileira imaginaram e executaram uma visão sobre os indígenas, os povos originários brasileiro, em alguma medida distante daquela imaginação que era presente na primeira metade do século XX, nas mentes integralistas e de outros setores autoritários no Brasil.
É uma chave persecutória a indígenas é muito nítida no pensamento militar brasileiro, sobretudo ali na década de 60, década de 70 ou mesmo década de de 80. Não é à toa que, no discurso bolsonarista, os indígenas são colocados eventualmente como potenciais inimigos porque poderiam ser pessoas e coletividades dissociadas do desenvolvimento capitalista, seja do ponto de vista tecnológico, seja do ponto de vista cultural, seja do ponto de vista religioso, mas também porque sobretudo poderiam ser alvos ou instrumentos daquele perigo de internacionalização da Amazônia.”
Tatiane: Raquel Rodrigues nos ajuda a entender como a linguagem é um instrumento poderoso na tentativa de revisionismo histórico pela extrema direita. Ela faz uma comparação com a obra distópica de George Orwell ‘1984’ para ilustrar como esse esforço de ressignificação, com termos como ‘racismo reverso’ e a rejeição da linguagem neutra, é parte de uma estratégia mais ampla de manipulação discursiva e política.
Raquel Rodrigues: Tentando se fazer muitas vezes um revisionismo histórico pela linguagem. Essa trajetória do do textual, dos termos, mostra uma coisa quase aquela distopia de 1984, né? Que uma nova língua que deturpa os termos e ressignifica a nova língua dessa ficção científica era uma uma questão super importante, quanto mais a gente conseguisse suprimir da linguagem, a gente suprime do mundo. Então, acho que são coisas que pode parecer, ela está falando disso e está falando daquilo. mas está tudo conectado, Está tudo tudo relacionado, na verdade. Numa grande campanha, numa grande estratégia.
Daniel: Agora, vendo o impacto social desse discurso, vemos como a extrema direita consegue atrair não apenas aqueles que compartilham diretamente de suas ideias, mas também pessoas que aspiram ao perfil propagado por seus líderes. Raquel Rodrigues reflete sobre como esse fenômeno, muitas vezes marcado pela hipocrisia, afeta não só a política, mas também as dinâmicas econômicas e sociais.
Raquel Rodrigues: O efeito político é de todas as ordens, da ordem econômica, política mais geral, mas muitas vezes pode ser que atraia pessoas que não têm o mesmo perfil, mas que querem ter aquele perfil ou que admiram, porque querem ser proprietários. Esse tipo seguem esse modelo, de ídolo, que normalmente é uma hipocrisia danada.
Tatiane: O processo de negociação entre militares e políticos civis durante a transição para a Nova República deixou consequências profundas que sentimos até hoje, como a anistia que impediu o julgamento dos crimes cometidos durante a ditadura. Adriana Marques comenta sobre os impactos desse acomodacionismo político.
Adriana Marques: É, e nesse processo de acomodação houve, essa anistia, que impediu que os crimes cometidos durante a ditadura fossem julgados. E agora nós colhemos, as consequências desse processo acomodacionista.
Tatiane: Este foi o quarto episódio da série Termos Ambíguos, realizada em parceria com o Oxigênio, a partir do material do Termos Ambíguos do debate político atual: Pequeno Dicionário que você não sabia que existia, coordenado pela Sonia Corrêa. Esse é um projeto do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UFRJ e contou com vários autores na produção dos verbetes.
Daniel: A apresentação do episódio foi feita por mim, Tatiane Amaral, doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e pelo Daniel Faria, estudante do curso de Midialogia, na Unicamp, produtor e editor do áudio deste podcast. O roteiro foi escrito pel Valério Paiva, jornalista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e aluno do curso de Especialização em Jornalismo Científico, do Labjor, que também fez também as entrevistas. A Tatiane Amaral também fez entrevistas, roteiro e apresentação. A revisão do roteiro foi feita pela Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio, pela Nana Soares, da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e pela Sonia Corrêa, coordenadora do projeto Termos Ambíguos, Pesquisadora Associada da ABIA e Co-Coordenadora do SPW.
O Oxigênio apresenta um novo podcast parceiro, o Fish Talk. Desta vez tratando de peixes. Isso mesmo, um podcast sobre peixes! The Fish Mind, ou A Mente do Peixe, é um programa desse podcast com foco na capacidade que esses animais têm de sentir dor e experimentar outros estados emocionais. Vamos ouvir também sobre suas habilidades cognitivas nos episódios desse programa. A ideia é trazer essas informações importantes em um diálogo informal de poucos minutos. O programa geralmente é composto por episódios independentes, mas temas que precisam de mais aprofundamento são apresentados em mais de um episódio. O Fish Mind faz parte de um projeto que é fruto de uma colaboração do Centro de Aquicultura da Unesp (Caunesp) no Brasil com a FishEthoGroup, uma associação sem fins lucrativos que trabalha em prol do bem-estar dos peixes, preenchendo lacunas entre a ciência e as partes interessadas no setor da aquicultura, entre eles: produtores, certificadores, comerciantes, ONGs, decisores políticos e consumidores. A entidade foi criada em 2018 e está sediada em Portugal.
ROTEIRO
João: Sabia que, assim como os humanos, os peixes conseguem reconhecer-se? O autorreconhecimento é uma habilidade que até recentemente só havia sido demonstrada em mamíferos. Mas agora foi
demonstrada em uma espécie de peixe também!
Carol: Neste episódio de A Mente do Peixe, vamos falar sobre a habilidade dos peixes de se reconhecerem, algo que envolve autoconsciência. Eu sou a Carol Maia.
João: E eu sou o João Saraiva, e começa agora o episódio Habilidades dos Peixes: Auto-Reconhecimento!
TRILHA SONORA
Carol: Reconhecer a si mesmo diante de um espelho é uma habilidade cognitiva que só havia sido cientificamente demonstrada em alguns primatas – como chimpanzés, bonobos e orangotangos – além
de elefantes e golfinhos. Mas o artigo ‘Cleaner fish recognize self in a mirror via self-face recognition like humans’, publicado em 2023 na revista PNAS, veio para mudar essa história…
João: Nesse estudo, Kohda e os seus colaboradores mostraram que um peixe-limpador cientificamente conhecido como Labroides dimidiatus é capaz de se reconhecer no espelho. Através de uma série de
experiencias, os pesquisadores demonstraram não apenas que esse peixe se reconhece, mas também que a autoconsciência surge da habilidade desse peixe de formar uma imagem mental do seu próprio
rosto com base em experiências anteriores.
Carol: Quando esse peixinho foi apresentado a imagens suas ou de outros indivíduos de sua espécie, ele realizou ataques como faria normalmente. Mas, quando os pesquisadores fizeram uma marca externa na região da garganta do peixe para simular a presença de um parasita e o colocaram diante do espelho, observaram que o peixe-limpador tentava se livrar do ‘parasita’, esfregando o rosto em pedrinhas!
João: Após essa experiência, os pesquisadores observaram que o pequeno peixe-limpador continuou atacando imagens de outros indivíduos de sua própria espécie, mas parou de atacar a sua própria
imagem em fotos!
TRILHA SONORA
Carol: Uau! E os mesmos pesquisadores não pararam por aí. Eles também fizeram um teste em que apresentaram ao peixe-limpador imagens que combinavam o corpo de outro indivíduo, mas com seu
próprio rosto, ou o rosto de outro indivíduo, mas com seu próprio corpo, para ver em qual situação o peixe era capaz de se reconhecer nas fotos.
João: Quando o rosto era do peixe sendo testado, ele não atacou muito a imagem, mas os ataques tornaram-se mais intensos quando era o corpo, e não o rosto, que pertencia ao peixe testado. Com isso,
esses pesquisadores demonstraram que o mecanismo pelo qual esse peixe-limpador se reconhece no espelho é formando uma imagem mental de seu próprio rosto!
Carol: E tem mais! Em outro teste do mesmo estudo, os pesquisadores ainda observaram que peixes não marcados, mas visualizando imagens com seus rostos contendo a marca usada para simular a
presença de um parasita, tentavam esfregar a região correspondente no substrato arenoso do fundo!
João: Assim, fica claro que esse pequeno peixe é capaz de se reconhecer por meio do auto-reconhecimento facial. E ao realizar outros testes, os mesmos investigadores também demonstraram que esse peixe-limpador provavelmente consegue distinguir entre indivíduos familiares e não familiares, mostrando menos agressividade em relação às imagens familiares.
TRILHA SONORA
Carol: Fascinante! Tudo isso demonstra que essa espécie tem a capacidade de autoconsciência ao formar uma imagem mental do próprio rosto, assim como nós humanos.
João: E não há motivo para suspeitar que os peixes-limpadores sejam excepcionais dentro dos vertebrados ou até mesmo dentro dos peixes em relação aos mecanismos cognitivos que permitem esse
tipo de auto-reconhecimento, o que significa que é possível que outras espécies de peixes também tenham essa habilidade incrível.
Carol: E esta não é a única habilidade cognitiva incrível que os peixes conseguem realizar. Muitas outras já foram descobertas, várias delas bastante semelhantes ao que os humanos podem fazer. Vamos
continuar falando sobre elas nos próximos episódios de Habilidades dos Peixes. Fique ligado!
TRILHA SONORA
João: Este episódio foi apresentado por mim, João Saraiva, e por Carol Maia, que também o coordenou. Nós somos da FishEthoGroup Association.
Carol: Você pode seguir a Associação FishEthoGroup nas nossas redes sociais. Estamos no Facebook (facebook.com/fishethologyandwelfare), Instagram (@fishethogroup) e Twitter (@group_fish). Até o
próximo episódio!
TRILHA SONORA
ENCERRAMENTO DO FISH TALK
A crise ambiental é uma realidade que se apresenta diante de nós e já está alterando o nosso cotidiano. É possível solucionar esse problema? Ou ao menos mitigá-lo para que possamos viver de maneira digna nos próximos anos? As Soluções Baseadas na Natureza (SBN) se apresentam como alternativas tanto para mitigar a crise e melhorar a nossa vida nas cidades, quanto para aumentar a produtividade de cultivos – tornando a agricultura sustentável e também oferecendo um custo-benefício bem mais em conta. Neste episódio, Pedro A. Duarte irá te contar como essa prática surgiu e trazer alguns exemplos de aplicações práticas.
Você vai escutar entrevistas com Jean Paul Metzger, Gabriela Marques di Giulio, Rafael Chaves, Pedro Krainovic. E, também, Luara Tourinho.
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Pedro A. Duarte: Em maio deste ano, o estado do Rio Grande do Sul enfrentou enchentes em quatrocentas e setenta e uma cidades; pessoas tiveram que deixar suas casas e, em um mês, mais de cento e setenta mortes foram confirmadas. Se, em setembro do ano passado, diversos estados do país sofreram com ondas de calor, este ano o problema se agravou: em apenas um dia foram registrados cinco mil focos de incêndio ao redor do país. A fumaça emitida pegou carona nos rios aéreos e chegou a diversos estados do Centro Oeste, Sudeste e Sul do país, deixando a qualidade do ar insalubre.
Chuva atípica e enchentes, ondas de calor, neblina tóxica. A crise ambiental (anteriormente conhecida como “aquecimento global”) é uma realidade que se apresenta diante de nós e já está alterando o nosso cotidiano. É possível solucionar esse problema? Ou ao menos mitigá-lo para que possamos viver de maneira digna nos próximos anos?
As Soluções Baseadas na Natureza se apresentam como alternativas tanto para mitigar a crise e melhorar a nossa vida, quanto para aumentar a produtividade de cultivos – tornando a agricultura sustentável e também oferecendo um custo-benefício bem mais em conta.
Com a ajuda de especialistas, vou te contar como essa prática surgiu e trazer alguns exemplos de soluções foram aplicadas para resolver problemas na prática.
Bom dia, boa noite ou boa tarde. O meu nome é Pedro A. Duarte. E você está escutando o podcast Oxigênio.
Jean Paul Metzger: Basicamente o que a gente está tentando utilizar nas nossas soluções são esses serviços, esses benefícios que a natureza traz para a espécie humana. Então são soluções que são suportadas por esses benefícios que se dirigem a, ou que lidam com desafios ambientais, ou socioambientais, humanos. Então é algo bem antropocêntrico, a gente está lidando com problemas da sociedade humana. Segundo ou terceiro, que promovam ao mesmo tempo bem estar e que protejam a biodiversidade através de um leque muito amplo de ação que vai desde a proteção à restauração, ao manejo seguro e o uso sustentável.”
Pedro A. Duarte: Você acabou de ouvir o biólogo Jean Paul Metzger, professor do Instituto de Biociência e do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Jean explicou que o conceito de “Solução Baseada na Natureza”, que vamos tratar também pela sigla SBN neste episódio, é relativamente recente. Surgiu em 2016 em um grupo de trabalho da IUCN, a União Internacional para a Conservação da Natureza. Eles entendem a natureza não apenas como algo impactado pela atividade dos humanos, mas também como algo que ajuda a solucionar desafios sócio-ambientais. O conceito teve uma aderência muito forte pela União Européia e rapidamente se difundiu no meio científico ao redor do mundo.
Jean Paul Metzger: Então é um tema bastante guarda-chuva que tem um risco de ser entendido como se fosse uma panaceia de todas as soluções. Tem uma crítica muito grande de falar “ah, solução baseada na natureza é apenas mais um termo que redefine de uma forma charmosa ou interessante, atrativa algo que a gente já está fazendo, já conhece? É, não tem nada de novo”. E, em parte, eu acho que isso acontece de fato: é um termo que que foi apropriado ou que tá muito na moda. Mas, por outro lado, se a gente olhar a comunidade que lida com essas questões de soluções baseadas na natureza, eles são um pouco mais restritivos do que você deveria ou não chamar de solução baseada na natureza.
Pedro A. Duarte: Jean enumerou três aspectos essenciais para caracterizar uma Solução Baseada na Natureza utilizados pela comunidade científica.
Primeiro: a solução deve trazer um benefício mútuo à espécie humana e para as demais espécies. Segundo: ao solucionar um problema, o projeto também deve trazer outros co-benefícios. Terceiro: o custo-benefício de uma solução baseada na natureza, deve ser melhor que o de uma “solução cinza”, as soluções baseadas na engenharia.
Vamos ouvir alguns exemplos:
Jean Paul Metzger: A gente não pode pensar, por exemplo, em uma ação de conservação de restauração apenas focada na biodiversidade – isso não seria uma Solução Baseada na Natureza. Agora, se é uma ação de conservação, a criação de um parque natural, onde você quer proteger a biota que tá naquele local, mas ao mesmo tempo quer trazer as pessoas para aquele local prover um serviço de recreação; ou se você está pensando que a proteção daquele local também beneficia as pessoas em termos de proteção de recursos hídricos, então aí se tem um benefício mútuo – tanto das espécies, da proteção da biodiversidade, quanto do benefício para a gente.
Pedro A. Duarte: Vamos conhecer o segundo ponto que diferencia as soluções baseadas na natureza de outras soluções, segundo Jean:
Jean Paul Metzger: É que a Solução Baseada na Natureza não apenas acaba trazendo parte de solução para um determinado problema como tem também um conjunto de co-benefícios. Então o exemplo clássico que já sabe mais fácil de ser entendido é, por exemplo, se você quer lidar com o problema de enchente em cidades: você pode construir piscinões. É muito eficiente, mas ele só tem aquela função de você reter o escoamento da água num determinado momento de uma tempestade, de uma chuva, de forma a reduzir o risco de transbordamento dos rios. Agora se você cria, dentro da cidade, uma malha de áreas que são mais permeáveis (como jardins de chuvas, você cria um sistema de canalização, de biovaletas dessas águas), você tem uma solução que vai no mesmo sentido de um piscinão – você evita que ela chega chega toda ao mesmo tempo no rio e ele transborde. Mas ao você criar essas áreas mais permeáveis, você também cria um conjunto de outros co-benefícios: você vai ter biodiversidade naquele local; você vai ter uma cidade que visualmente, esteticamente, é mais bonita; você vai possivelmente ainda em função do tipo de planta que você põe nessas áreas mais permeáveis, você pode também criar uma área de sombreamento e você cria uma uma área de resfriamento. Então você age em outros aspectos do bem-estar humano ou mesmo da biodiversidade, né?
Pedro A. Duarte: E qual seria o terceiro ponto do nosso entrevistado?
Jean Paul Metzger: E o terceiro é de custo-benefício: uma vez que você cria uma solução que se apropria do funcionamento dos ecossistemas, você, de uma certa forma, não precisa construir algo que faça aquela função que a natureza já está fazendo de graça para você. Então essas soluções Baseadas na Natureza são menos custosas e muitas vezes com equilíbrio melhor de custo-benefício. Um outro exemplo que é para você lidar com as ressacas marinhas, ou com esses eventos de ressurgências… possivelmente a forma mais efetiva de você lidar com essas inundações costeiras, é você criar diques – eles são super eficientes, mas são super caros também e precisam de manutenção. Quando o dique falha, como a gente viu em Porto Alegre, que eles tinham todo um sistema de diques para prevenir as enchentes, quando o dique falha a sua solução vai pro beleléu. Mas, enfim as soluções cinzas de engenharia, elas são muito eficientes e são muito custosas também. Mas numa área costeira, por exemplo, você preservar um manguezal o custo é mínimo, e a efetividade de um manguezal para você conter essas ressacas mais fortes não é tão grande quanto um dique que é uma barreira física intransponível, mas tem uma certa eficiência. Então se você pensar em termos de custo-benefício pode ser que a manutenção de manguezal, mesmo uma restauração de um manguezal ou de uma barreira de coral, seja muito melhor em termos de custo-benefício.
Pedro A. Duarte: Jean acrescentou um quarto critério para apoiar as soluções baseadas na natureza que é a questão da co-criação. Mas o que seria isso?
Jean Paul Metzger: Pelo entendimento mais restrito dessas soluções, são soluções na verdade baseadas na natureza e nas pessoas ao mesmo tempo. São soluções que envolvem a população local que são um pouco construídas com as pessoas envolvidas naquele desafio sócio-ambiental e que de uma certa forma são melhor apropriadas e mais aceitas por essa população.
E isso pode levar, no caso de restauração, por exemplo, mesmo que seja uma restauração que traz benefícios para as pessoas, se as pessoas não percebem esse benefício, elas vão sabotar. Você pode regular, restaurar, mas se as pessoas não entendem a solução, não participaram da construção delas, na primeira ocasião elas vão destruir aquilo, vão deixar o gado entrar, vão pisotear. E como a gente tem visto agora nesse exato momento episódios recorrentes de pessoas colocando fogo. Ou seja, é uma forma também de você sabotar essa natureza.
Pedro A. Duarte: Quando Jean citou as enchentes em Porto Alegre, eu me lembrei de um exemplo de Solução Baseada na Natureza que ganhou a mídia naquela época e foi anunciada como uma maneira de mitigar os efeitos da inundação. Eram as cidades esponja, uma proposta originada na China no início dos anos 2000. Na verdade são uma junção de diversas soluções que servem para reduzir o tamanho das enchentes e seus efeitos mais adversos – incluem: o uso de parques alagáveis; reconstrução da margem dos rios restaurando sua mata ciliar; a criação de jardins de chuva; o uso de telhados verdes; enfim…
Em diversos lugares do mundo, inclusive no Brasil, as Soluções Baseadas na Natureza estão sendo usadas, seja para evitar um agravamento da crise ambiental e climática, seja para mitigar seus efeitos.
Conversei com Gabriela Marques di Giulio, doutora em Ambiente e Sociedade e professora associada do Departamento de Saúde Ambiental da USP, para saber de quais maneiras as Soluções Baseadas na Natureza podem ajudar no enfrentamento à crise climática e ambiental.
Gabriela Marques di Giulio: Primeiramente, acho que é fundamental que a gente situe o que é a crise climática. Mais do que um fenômeno que a gente interpreta a partir das mudanças no estado do clima, mudanças que persistem por um longo período, cujas causas estão bastante associadas às: ações humanas; ao desmatamento; diretamente atreladas ao uso intenso de combustíveis fósseis; emissões de gás de efeito estufa. A crise climática, ou mais propriamente como a gente vem chamando hoje em dia de emergência climática é um resultado direto tanto desse modelo de exploração da natureza, mas também desse modelo de desenvolvimento que não só produz essa crise, mas vai produzir e amplificar outras crises importantes – e às quais as SBNs também podem endereçar. Que é a crise de perda de biodiversidade e o aumento da poluição. Então não é à toa que hoje, por exemplo, a ONU vai tratar essas três crises como a tripla crise planetária – essa ideia de que é uma mudança climática, perda de biodiversidade e a poluição, são problemas, crises socioecológicas que afetam o mundo como um todo e que produzem e amplificam outros problemas graves.
Pedro A. Duarte: Entre os problemas socioecológicos graves, Gabriela elenca a insegurança alimentar e a insegurança hídrica. Estes são problemas que aceleram e amplificam questões de pobreza e de desigualdade social.
Gabriela Marques di Giulio: Então a nossa resiliência frente a essas crises vai depender da interação, da articulação, entre políticas públicas que vão ser pensadas em diferentes níveis. Então a gente pode pensar numa perspectiva mais global sobre os tratados e acordos internacionais. Mas a gente também pode pensar em políticas públicas puxadas pelo Governo Federal, governos estaduais, governos locais/municipais. Mas também pela interação entre os diferentes atores. Ou seja, a gente tá falando de atores governamentais, mas também do setor privado e inclusive dos indivíduos. Então essa interação é fundamental se a gente pensa nessa necessidade da gente reduzir drasticamente as emissões de gás de efeito estufa, mas também para a gente poder melhorar nossa capacidade de adaptação frente aos impactos dos eventos extremos.
E aqui eu acho que as SBNs tem um papel bastante importante. Se as SBNs são bem planejadas, bem projetadas, se elas estão integralmente conectadas, elas têm sim tanto uma capacidade um potencial de melhorar a nossa própria capacidade de adaptação e de resiliência, dos indivíduos e das cidades frente a esses eventos extremos; mas também a capacidade das cidades em promover ajustes, em diferentes áreas em diferentes setores, nessa tentativa de poder antecipar possíveis impactos negativos das mudanças climáticas; reduzir vulnerabilidades de territórios, de populações; de preparar, de tornar necessidades mais aptas a responder para diversos tipos de perigos e ameaças. Mas elas também podem, ao mesmo tempo, ampliar a proteção da biodiversidade – então lidar com os efeitos dessa crise de perda de biodiversidade – e atenuar os efeitos da poluição. Então propiciando melhor qualidade de vida e bem-estar para as pessoas.
Pedro A. Duarte: Ao lidar com os problemas causados pela emergência climática, as Soluções Baseadas na Natureza também podem servir para garantir Justiça Ambiental e Justiça Climática.
Gabriela pontuou que, ao falarmos desse tema, é importante reconhecermos primeiro que os problemas ambientais são distribuídos desigualmente em termos sócio-espaciais.
Gabriela Marques di Giulio: A gente também reconhece que em sociedades desiguais como a brasileira a maior carga dos danos ambientais é destinada, historicamente tem sido destinada às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos-tradicionais, às populações marginalizadas e vulneráveis. E é nesse pensamento também que a gente faz esse paralelo com a justiça climática: ou seja, a gente reconhece que os impactos desproporcionais das mudanças climáticas têm caído especialmente sobre esses grupos. A crise climática, acaba se tornando mais um eixo de opressão – que na verdade vai se somar a outras questões ligadas à pobreza, à educação, acesso a recursos naturais, que, sobrepostos, geram situações de profunda desigualdade. Então, quando a gente olha todas essas discussões que a gente tem feito pela lente da Justiça Climática, é fundamental que a gente considere que os procedimentos implementados pelas políticas climáticas, pelas ações climáticas, podem agravar questões de desigualdade social.
Pedro A. Duarte: E de que maneira as SBNs podem se relacionar com a Justiça Climática, social e ambiental?
Gabriela Marques di Giulio: Vamos reconhecer que: primeiro, as cidades brasileiras são esses espaços marcados por segregações socioespaciais, por amplas desigualdades. Espaços que são providos de infraestrutura verde, a presença de SBN em ambientes urbanos, coincide muito com os locais que já contam com infraestrutura, com serviços, com assistência; que também são os espaços ocupados por pessoas com melhores condições socioeconômicas. É fundamental que a gente, ao pensar em como avançar essa agenda de SBN, também sinalize a necessidade de minimizar o que vem sendo chamado de gentrificação verde. Ou seja, aquele processo de quando a gente propõe, alcança uma melhoria da qualidade ambiental de um lugar, a gente torna aquela área também mais atrativa, encarecendo o custo de vida na região, atraindo pessoas mais abastadas e expulsando antigos moradores. Então, a implementação de SBN, nesse sentido, precisa estar sempre atenta às questões de injustiça ambiental e climática, mas ela também precisa estar atenta às questões de governança. E é por isso que pensar SBN, em particular no contexto das nossas cidades, precisa lidar com questões de governança. Ou seja, a gente precisa co-produzir, co-pensar, enfim, implementar essa agenda numa perspectiva de pensar coletivamente: sociedade civil, lideranças locais, empresas do setor privado, nessa perspectiva da gente alcançar decisões que de fato não amplifiquem essa gentrificação verde e não agrave essas questões de injustiça.
Pedro A. Duarte: É possível perceber pela fala da Gabriela, que a implementação de Soluções Baseadas na Natureza precisa ser realizada pelo poder público – seja para garantir o bem-estar da população ao implementá-la (como Gabriela colocou em sua fala); e também porque muitas vezes esses projetos são de grande escala e envolvem a intervenção em espaços públicos.
Para entender melhor como se dá o processo de implementação das SBN, conversei com Rafael Chaves – ele é vice-diretor do projeto Biota Síntese, atuando justamente na interface entre a pesquisa científica e os gestores públicos (como, por exemplo, as secretarias do Meio Ambiente – em nível municipal e estadual).
Rafael Chaves: É responsabilidade do poder público zelar e proteger a integridade dos ecossistemas. O poder público, muitas vezes as pessoas pensam que é o governo, mas não: o poder público é toda a sociedade. Evidentemente o governo é uma estrutura fundamental do poder público para zelar e para ter uma institucionalidade para isso. Mas é a atividade de todos os cidadãos fazem parte desse conjunto do que é o poder público. Então eu entendo que é o poder público que tem essa responsabilidade de implementar Soluções Baseadas na Natureza para que a gente possa ter um país habitável e saudável para as pessoas e também para a natureza.
O governo tem uma importância muito grande para convocar. Quando o governo lança decretos, resoluções normativas ou mesmo as leis do Poder Legislativo. Mas especialmente… eu estou falando aqui das ferramentas do Poder Executivo de implementar – esse é um meio principalmente por decretos e resoluções… Por outro lado, a sociedade civil organizada tem um papel muito importante porque ela traz demandas de base, demandas que tão tocando a sociedade de algum modo e que estão sensibilizando a sociedade. É muito comum essas agendas que chegam também pela sociedade civil organizada terem um apelo social importante. Então é importante que o governo faça as suas convocatórias e organize as suas estruturas para solucionar problemas que são de toda a sociedade, de modo conectado com essas demandas que chegam.
Em outra ponta, a gente tem as universidades e instituições de pesquisa que estão gerando conhecimento, trazendo evidências que possam basear a implementação dessas soluções. E a gente tem o setor privado que mobiliza toda a economia e tem um impacto muito grande, seja para gerar soluções ou para gerar problemas.
Pedro A. Duarte: É interessante dizer que o setor privado pode participar da implementação de Soluções Baseadas na Natureza de duas formas. A primeira é a necessidade de trazer uma contrapartida ambiental ao fazer uma licitação para o uso de determinado território – a construção de um bairro por meio de uma incorporadora, por exemplo, precisa passar pela prefeitura, que analisará o projeto e garantirá a existência de um parque, por exemplo.
A outra maneira é participando de seu financiamento. Em 05 de junho, por exemplo, o governo do Estado de São Paulo lançou, por meio de um decreto, o Finaclima SP. Trata-se de um mecanismo de financiamento para que o setor privado pudesse investir em diversas iniciativas climáticas promovidas pelo Estado de São Paulo – como o reflorestamento de 37,5 mil hectares, prevista no Plano Estadual de Meio Ambiente.
A implementação de uma Solução Baseada na Natureza pode ser algo bastante custoso, como o reflorestamento, por exemplo. Envolve pesquisar a área que será reflorestada, para entender quais espécies serão plantadas ali. Envolve a compra de sementes ou de mudas. Envolve a irrigação dessa área. Envolve o acompanhamento do crescimento das árvores e das demais espécies. E também envolve a manutenção, para garantir que as plantas não estão sendo comidas antes de terminarem seu período de crescimento e até para evitar incêndios.
Mas isso não quer dizer que as SBN não possuem algum tipo de retorno financeiro – e isso inclui o reflorestamento de grandes áreas degradadas. Aliás, o custo-benefício de uma SBN sai muito mais em conta devido aos co-benefícios de cada projeto. Rafael enumerou algumas possibilidades de retorno financeiro do reflorestamento.
Rafael Chaves: Eu tenho a possibilidade de receitas vindas da restauração desse ecossistema. Eu tenho, por exemplo, potenciais inexplorados: potenciais de fármacos, novos remédios que vem da biodiversidade; potenciais de cosméticos, shampoos e cremes utilizam muitos produtos da biodiversidade. Eu tenho óleos essenciais, as próprias sementes, castanhas, frutos. Tem inúmeros produtos da restauração: o próprio corte seletivo de madeira para vender essa madeira. Eu tenho a própria captura de carbono como uma receita potencial porque hoje eu tenho os créditos de carbono que podem ser utilizados numa área em restauração – e estão aumentando de valor nos últimos anos.
E eu tenho os próprios benefícios intangíveis também: de melhora de sensação de alguém que tá próximo de uma área restaurada, melhora de qualidade de vida, melhora de saúde, de doenças respiratórias, doenças cardiovasculares, a gente tem bastante dado para mostrar que eu tenho benefícios inúmeros para além desses benefícios econômicos de produtos dessa área em restauração que vão ser comercializados. Eu tenho também nesses serviços ecossistêmicos, uma série de benefícios para as pessoas – benefícios diretos e indiretos. Eu tenho, por exemplo, um potencial enorme de geração de emprego também, a gente publicou um estudo mostrando que a Meta Brasileira de 12 e meio milhões de hectares de restauração pode gerar dois e meio milhões de empregos. O que é hoje mais de um terço dos desempregados de todo o Brasil, um dado bastante relevante. Isso só os empregos diretos na própria atividade de restauração, sem falar em toda essa outra parte da do que a gente chama de cadeia de valor da restauração. A gente tem, por exemplo, um estudo que mostra que a cada dólar investido em restauração, eu tenho potencialmente 30 dólares em benefícios com serviços ecossistêmicos. Com certeza a restauração é um investimento que compensa muito.
Pedro A. Duarte: A restauração florestal e de demais ecossistemas é um exemplo clássico de Solução Baseada na Natureza – principalmente quando estamos buscando maneiras de reduzir a emissão de gás carbônico. Agora, também existem outros problemas socioambientais que podem ser resolvidos por meio desse restauro. Quem irá nos contar alguns desses exemplos é meu xará, o engenheiro florestal Pedro Krainovic.
Pedro Krainovic: Posso dar um outro exemplo que eu acho bastante icônico num projeto que eu trabalhei. A gente tinha como objetivo fazer uma recuperação de uma área degradada numa numa região de Serra, onde essa região era berço de um grande rio que abastece mais de 10 milhões de pessoas hoje, no estado do Rio de Janeiro. E essa região é caracterizada por ter 88% da extensão territorial como terras altamente susceptíveis a processos erosivos.
Então o que isso acarreta no final do dia, né: a água que chega até o sistema de tratamento, que vai depois distribuir isso para milhões de pessoas, ela chega com muitos sedimentos, com muita Terra – porque essa área está degradada, ela já é suscetível à erosão; o solo está solto, está sendo erodido cada vez mais, ele vai naturalmente ser direcionado para a parte mais baixa da paisagem, que é também onde a água passa, né. E essa água chega na estação de tratamento com níveis de turbidez, acidez e outros parâmetros qualitativos da água muito prejudicados. E aí o que isso leva? Leva que o sistema de tratamento fica muito mais caro porque eles precisam tirar essa turbidez. E isso aumenta os custos dos fatores de produção. Entre aspas eles estão “beneficiando a água” para distribuir água para a população, uma água minimamente com qualidade aceitável. E aí a gente chega até a ponta que é o consumidor, que tá também pagando essa água e consequentemente pagando mais caro por essa água pelo tratamento que precisa ser feito para ele poder receber essa água.
Então qual era o projeto? O projeto era a gente plantar, fazer uma intervenção biológica, orientada, é claro, com as espécies mais resistentes, muitas vezes inoculadas com bactérias nitrificantes que auxiliam a captação de nitrogênio para planta e com isso ela fica mais resiliente e a questão de perturbação no ambiente. E essa planta consegue se estabelecer num ambiente com níveis de erosão altos, né. Ela consegue enraizar; enraizando ela consegue melhorar a estruturação do solo. Ela também, depois de crescida, vai proporcionar processo de ciclagem de nutrientes, ciclagem de material orgânico, com isso ela vai melhorar porosidade do solo e infiltração da água no solo, vai melhorar uma série de fatores físico-químicos que condicionam essa predisposição do solo, a erosão. Ou seja, vai melhorar a estrutura, vai melhorar a permeabilidade e vai segurar esses sedimentos.
Pedro A. Duarte: Agora, quando o assunto é agricultura, pedi para a bióloga Luara Tourinho contar alguns exemplos de SBNs que podem ser utilizados nos contexto dos cultivos.
Luara Tourinho: O que acontece muito é que o sistema agrícola mais comum que a gente se depara hoje em dia é um sistema que ele é muito agressivo com a natureza, intensivo no sentido de produção e unifocal – pensa, principalmente, na geração do recurso que você tá interessado. Esse tipo de sistema agrícola é muito eficiente para gerar o recurso que a gente está interessado, mas ao mesmo tempo ele perde em obter uma série de recursos. Então é nesse sentido que a gente sugere uma agricultura sustentável, uma intensificação ecológica. Porque, quando você faz um acréscimo ecológico no seu sistema pensando na introdução de uma diversificação maior de culturas, a manutenção ou restauração de um sistema ecológico, de uma vegetação nativa, você aumenta também a provisão de uma série de outros serviços. Você aumenta espécies que são controladoras de pragas, espécies nativas que podem fazer o controle biológico; você melhora a regulação climática da sua agricultura; você melhora e aumenta a qualidade da água, a quantidade de água; você vai absorver carbono. Então é uma série de possibilidades que uma intensificação ecológica pode trazer pro agricultor e agricultura.
É uma outra opção também é de você manter uma vegetação nativa próximo ao sistema agrícola que é uma região onde tem uma diversidade grande de polinizadores, por exemplo. Então a depender de como você configure essa paisagem, de como você permita que a vegetação nativa esteja próxima do seu cultivo, o seu cultivo vai ser polinizado por espécies nativas de polinizadores que vivem dentro da vegetação nativa – é um outro exemplo.
Pedro A. Duarte: A Luara trouxe esse exemplo porque, em cultivos onde a soja, por exemplo, vai até perder de vista até o fim do horizonte, os fazendeiros precisam comprar abelhas e colméias artificiais para que elas possam fazer a polinização das plantas que estão no meio do campo. Isso porque, os insetos e demais polinizadores não costumam visitar o miolo de cultivos extensos, limitando-se apenas a borda – até porque, todo o pólen que as abelhas precisam elas já conseguem nesse comecinho. Essa mistura de paisagem nativa com plantio estimula os polinizadores a visitarem diversas áreas da plantação.
Luara Tourinho: Se você consegue manter uma vegetação nativa próximo ao seu cultivo, você vai além de manter a visita dos polinizadores que são nativos e residem prioritariamente na vegetação nativa você também melhora as condições climáticas do ambiente: você também pode aumentar a umidade, então você pode aumentar o fluxo o índice de chuva do local, a precipitação do local. Aumenta também a fertilidade do solo porque a vegetação nativa é uma fonte de nutrientes para o solo, a partir do momento que ela tem uma grande quantidade de matéria orgânica que pode ser depositada no solo e esse solo vai ficar mais fértil. Além da vegetação em si, a gente também tem a fauna: então tem alguns animais que podem também criar sistemas dentro da terra de túneis, que também melhora o fluxo de ar por dentro do solo, o que também pode melhorar a qualidade do solo.
Pedro A. Duarte: As Soluções Baseadas na Natureza também podem ser implementadas nas cidades – lembra do exemplo das cidades esponja? Na nossa conversa, Gabriela di Giulio também enumerou outros exemplos que têm sido aplicados nas cidades do Brasil e mundo afora.
Gabriela Marques di Giulio: Acho que é importante a gente pensar também que quando a gente fala de SBN, a gente tá falando de um conjunto de soluções. Então a gente pode pensar, por exemplo: na agricultura urbana; nos Jardins de chuva; em parques é urbanos; em parques lineares – que são soluções que têm sido implementadas em diversas cidades no mundo; que tem vários estudos mostrando a importância e a efetividade e eficácia dessas soluções para minimizar os efeitos, os impactos negativos dos extremos climáticos; mas também ampliar a proteção de biodiversidade; atuar na redução dos impactos relacionados à poluição. E são experiências que também têm sido testadas nas cidades. Então, por exemplo: agricultura urbana, tem uma contribuição extremamente importante, não só para a gente alcançar a segurança alimentar e nutricional – para a gente garantir o direito à alimentação adequada, pra gente contribuir para a justiça alimentar. Mas ela também pode, a depender de como essa agricultura é produzida, é planejada, ela pode também contribuir bastante para evitar o espraiamento urbano sobre áreas naturais; para gerar renda; para proteger biodiversidade; auxiliar inclusive na mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
Pedro A. Duarte: Tem outras soluções que a Gabriela menciona, uma delas é o Jardim de chuva, já lembrado neste episódio pelo Jean…
Gabriela Marques di Giulio: Quando a gente pensa em jardins de chuva, a gente também está pensando em ações que podem melhorar, reduzir o escoamento superficial e promover a melhoria da qualidade da água.
Quando a gente pensa em parques urbanos, a necessidade de que cidades invistam cada vez mais em parques né dentro dos ambientes urbanos, eles não só tem efeitos positivos e que já vem sendo comprovados em vários estudos em relação ao microclima das cidades – então aquela regulação climática bem no nível local – mas também eles propiciam um espaço de lazer; de práticas de atividade física ao ar livre; o que ajuda, inclusive, a conectar as pessoas com a natureza. E isso traz uma série de efeitos positivos para a saúde física e para a saúde mental.
Pedro A. Duarte: Quando eu perguntei para o Rafael Chaves os desafios de se implementar uma Solução Baseada na Natureza, ele pontuou que um deles era fazer a população ter conhecimento dessas SBN. Quando há enchentes, as pessoas logo pensam em piscinões, em aterrar os rios ou desviar seu curso. A infraestrutura cinza ainda é algo muito presente no imaginário popular.
Então eu espero que esse episódio tenha te ajudado a conhecer melhor as Soluções Baseadas na Natureza. E que você também possa se inspirar nelas ao abordar os problemas sócio-ambientais do lugar onde você vive!
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Pedro A. Duarte: Esse episódio foi produzido, roteirizado e apresentado por mim, Pedro A. Duarte.
A revisão é de Simone Pallone, coordenadora do podcast Oxigênio. Os trabalhos técnicos são de Carol Cabral e trilha musical do Blue Dot Sessions. Deixo aqui um agradecimento para minha colega Mayra Trinca, por me guiar durante o processo.
O Oxigênio tem apoio da SEC – Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e do SAE – Serviço de Apoio ao Estudante.
Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e também na sua plataforma de podcasts preferida. Não esqueça de seguir o programa nas redes sociais! No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio.
Muito obrigado por ter escutado este episódio e pela companhia. Até mais!
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Você já ouviu falar na Comida Frankenstein? Ela faz referência ao nome de um dos monstros mais conhecidos da ficção científica e traz consigo inúmeros debates. Neste episódio, Lívia Pereira e Lidia Torres falam sobre a ética científica instigada pela ficção científica e as problemáticas que envolvem as técnicas de obtenção dos Organismo Geneticamente Modificados, mais especificamente os alimentos transgênicos, ou como já foram denominados no passado, os Frankenfoods ou Comidas Frankenstein. Você vai escutar entrevistas com Vânia Massabni, professora da ESALQ – USP/Piracicaba, coordenadora da pós-graduação em Ecologia Aplicada e coordenadora do grupo de pesquisa e extensão GEDePE (Grupo de Estudos Desafios da Prática Educativa), onde trabalha com temas ligados a parte ambiental conectados ao ensino de ciências. E também vai ouvir a Suzi Cavalli, doutora em Alimentos e Nutrição pela UNICAMP e docente na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a nutricionista, socióloga da alimentação e professora na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Elaine de Azevedo, que também é produtora do podcast “Panela de Impressão”. Elas vão nos contar como o livro Frankenstein desperta o debate para ética na ciência, porque ele emprestou seu nome aos alimentos transgênicos e quais são os debates que envolvem os OGMs, 30 anos depois da sua criação.
[sons de tempestade]
Narrador (Daniel Rangel): “Foi numa lúgubre noite de novembro que contemplei a conquista de meus pesados trabalhos. Com uma ansiedade que era quase agonia, coletei os instrumentos da vida ao meu redor, para que pudesse infundir uma centelha na coisa inanimada aos meus pés. Já era uma da manhã; a chuva batia melancolicamente contra as vidraças e minha vela fora quase toda consumida, quando, sob a luz débil, vi o torpe olho amarelo da criatura se abrir, ela respirou fundo, e um movimento convulsivo agitou seus membros” (Shelley, 2017, p.65).
Lívia: Esse trecho que você acabou de ouvir foi o relato do personagem Victor Frankenstein, o cientista que é protagonista de um dos livros mais famosos do século XIX. Você provavelmente já leu ou ouviu falar, porque ele ganhou diversas releituras em filmes e desenhos animados. Também aparece em propagandas e em produtos por aí. De peças de teatro a fantasias de carnaval, de filmes e músicas a jogos e histórias em quadrinhos, a lista de menções ao universo do livro e do personagem Frankenstein é inesgotável. Escrito por Mary Shelley, publicado em 1818, quando a autora tinha apenas 20 anos, o romance adquiriu status de clássico da literatura e se disseminou pela cultura popular mundo afora. O trecho que você ouviu conta exatamente o momento em que Victor Frankenstein dá vida a um corpo inanimado, que ele construiu com pedaços de outros corpos, de pessoas que já estavam mortas.
Lidia: Esse fato narrado no livro é um dos motivos dele ser considerado a primeira obra de ficção científica da literatura ocidental. Mary Shelley ousou contar uma história que descrevia a possibilidade de criar vida por meio de princípios científicos e não mais sobrenaturais, como era de costume até então.
Lívia: O livro discute as principais questões da segunda revolução científica, que marcou sua época. As tensões científicas que estavam fervilhando tiveram grande impacto na narrativa. Foi um momento, na história da humanidade, de intensas mudanças no entendimento do homem e da natureza.
Lidia: Os novos conhecimentos científicos pareciam achados fantásticos, como os estudos de Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin, que desafiava a visão tradicional da criação divina da vida. Outro exemplo são os achados de Luigi Galvani, com seus experimentos em bioeletricidade, que procuravam estabelecer uma relação entre a corrente elétrica e o impulso nervoso que causa a contração muscular. As descobertas de Galvani levaram à construção da Pilha Voltaica e marcaram a evolução dos estudos sobre magnetismo e eletricidade.
Narrador: “Ascendem aos céus: descobriram poderes novos e quase ilimitados; podem comandar os trovões do céu, imitar o terremoto e até escarnecer do mundo invisível com suas próprias sombras” (p.56) “Após dias e noites de incrível labuta e fadiga, descobri a causa da geração da vida; mais do que isso, tornei-me capaz de animar matéria sem vida” (Shelley, 2017, p.60).
[Vinheta Oxigênio]
Lidia: Como a gente comentou, a originalidade do livro está, exatamente, nessas descrições dos progressos científicos da época, diante das indagações fundamentais sobre a vida e a sociedade. A ficção científica construída por Mary Shelley foi relevante para as discussões que estavam quentes na sociedade inglesa do século XIX, mas que reverberam ainda hoje em questões importantes da atualidade: o desejo humano em transcender os limites da natureza por meio da ciência e, ao mesmo tempo, ainda ter de lidar com o diferente ou o inimaginado.
Lidia: Eu sou a Lidia Torres, aluna do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor.
Lívia: Eu sou a Lívia Pereira, também aluna da Especialização no Labjor. Neste episódio do Oxigênio vamos apresentar um projeto, comandado pelas professoras Vânia Massabni e Raquel Rodrigues, da ESALQ – USP Piracicaba, que levou a leitura de ficção científica para as aulas de biologia de uma turma do ensino médio. A professora Vânia conversou com a gente e contou um pouco dessa experiência de ética na ciência com os jovens, a partir do livro Frankenstein.
/Lívia: Neste episódio também vamos falar sobre a ética nas pesquisas ligadas à engenharia genética, principalmente nas pesquisas de recombinação gênica relacionadas com os Organismos Geneticamente Modificados, conhecidos como OGMs. Nossos entrevistados vão apresentar um panorama dos atores envolvidos no processo de desenvolvimento e de consumo dos alimentos transgênicos e nos ajudar a responder à pergunta instigada pela narrativa da ficção científica: Será que aqueles questionamentos sobre a ética na ciência iniciados lá no século XIX e levantados pela Mary Shelley no livro ainda reverberam nos dias de hoje? De lá pra cá nós avançamos enormemente nas técnicas científicas, mas será que já superamos os problemas que envolvem a ética na ciência? Será que hoje em dia levamos em consideração o limite dos usos da ciência diante de seus efeitos na sociedade?
[música de transição]
Vânia Massabni: “Frankenstein é uma obra que inaugura o gênero de ficção científica, eu vim entender isso também com esse trabalho. Então, quando a Raquel trouxe a ideia eu falei: bom, dos temas eu acho que é o que mais me atrai, porque ele também tem uma ligação grande com biologia. Se pensássemos por exemplo em 2001: uma Odisseia no espaço, talvez desse para discutir mais física, mas eu procurei a ideia de você ter um monstro e esse monstro flerta com terror e tem uma parte social do monstro, que não é aceito. O que se espera, por que ele é monstro, na verdade, ele é diferente, porque ele foi feito de partes, de pessoas mortas? Então, isso causou muita comoção entre os alunos e a gente teve que explicar que isso não era nem ético ser feito, mas era uma discussão ali, uma discussão ética.
Lidia: Essa é a Vânia Massabni, a professora que orientou a Raquel Rodrigues no projeto de leitura de ficção científica em sala de aula. Desde 2020 ela coordena a pós-graduação em Ecologia Aplicada e seu grupo de pesquisa trabalha com temas ligados a parte ambiental, conectados ao ensino de ciências. Como ela apontou, a articulação entre a realidade científica e a imaginação dada pela ficção abre portas para reflexões acerca do impacto da ciência em nossas vidas. Um bom exemplo dos avanços no campo da biologia, como a gente já comentou, são os estudos ligados à engenharia genética, que envolvem técnicas de manipulação do DNA em laboratório. Essa tecnologia avançou muito na passagem do século XX para o século XXI. A clonagem e a transgenia deixaram de ser uma prática que só existia na ficção para ser uma realidade dos métodos e das práticas científicas.
Vânia Massabni: Então, até onde pode ir o cientista, que no caso chamava Victor Frankenstein. O Frankenstein é o cientista ali. Até onde ele pode ir? O que ele está extrapolando e está fazendo as vezes de, entre aspas, “Deus”, que seria dar a vida ao novo ser. E essa vida a partir dos seus conhecimentos. O Victor Frankenstein, a hora que ele vai fazer as suas tentativas e montar o monstro, ele tá sempre escondido, ele é quase que um vilão da história, porque depois ele não aceita esse monstro. Então, quem é cientista que ora é Deus, ora é o inverso de Deus? Ele é Deus a hora que ele cria, mas ele deixa de ser absolutamente Deus a hora que ele rejeita o que ele criou e não cuida e não zela e não é o pai esperado pelo monstro. Então, que ser humano é esse afinal?
Narrador: “Quem pode conceber os horrores de minha labuta secreta, enquanto eu chafurdava na terra profana dos túmulos ou torturava animais vivos para animar o barro sem vida? Meus membros agora tremem e meus olhos se afogam com as lembranças; mas, na ocasião, um impulso irresistível e quase frenético me incitava a seguir em frente; eu parecia ter perdido toda a alma e a sensação, a não ser pelo desejo de seguir com essa busca” (Shelley, 2017, p.62).
Lívia: As professoras trabalharam com os alunos o tema da manipulação da vida por meio dos organismos geneticamente modificados, como um exemplo prático dos limites da ética científica e suas implicações na sociedade. A atividade chamou atenção para as tecnologias de manipulação genética disponíveis na atualidade e como essa prática é utilizada na criação dos alimentos denominados transgênicos. Foram distribuídas reportagens sobre o assunto entre os alunos e uma delas citava a “Comida Frankenstein”, termo que era bastante utilizado no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 para se referir a esses tipos de alimentos.
Vânia Massabni: A gente distribuiu ali uma coletânea de notícias com reportagens e uma delas era com a manchete “Comida Frankenstein”. Essa comida geneticamente modificada, já tá aí o termo “em uso”, do “Frankenstein”. Nesse contra ou a favor dos transgênicos, a gente teve alguns favoráveis, outros não. Mas, principalmente eles colocaram argumentos. E aí que tá, né? Essa prerrogativa do ensino de ciências ajuda a desenvolver a argumentação dos alunos, mas a argumentação embasada.
Lidia: A experiência didática relatada pela Vânia nos chama atenção para a importância de levar os debates da ética na ciência para fora dos muros da universidade. Muitas pesquisas sobre as consequências do consumo de transgênicos são realizadas desde que eles se tornaram realidade há trinta anos. O primeiro produto vindo dessa tecnologia, um tomate modificado para retardar o amadurecimento pós-colheita, chegou aos supermercados em 1994.
Suzi Cavalli: A relação do termo “Frankenfood”, eu acho que ele vem num linear que quando entra os organismos geneticamente modificados, os OGMS ou transgênicos, eles dão um susto, assim, no sentido que eles não são uma biotecnologia ligada a um processo.
Lívia: Essa que você ouviu é a professora Suzi Cavalli, doutora em Alimentos e Nutrição pela UNICAMP e docente na Universidade Federal de Santa Catarina. A Suzi tem desenvolvido pesquisas sobre a utilização dos transgênicos e contou pra gente sobre o resultado dessas pesquisas, mas primeiro ela nos deu um panorama sobre o termo “Comida Frankenstein”.
Suzi Cavalli: Então, não se sabia o que ia acontecer em relação a esses novos produtos e imaginava também que, como você mexe com a genética em si, com genes diferentes, você literalmente tá mexendo com a vida. Então, dentro desse pressuposto, imagina que tu ia criar um Frankenstein, dentro dessa ligação com o personagem do livro. Porque você não tinha uma dimensão do que isso poderia estar ocorrendo. Onde você faz esse processo todo.
Lidia: Bom, mas afinal de contas o que são esses organismos geneticamente modificados? De uma forma bem geral, os primeiros organismos geneticamente modificados surgiram a partir de combinações das técnicas de biotecnologia e engenharia genética nos anos 1970. Essa combinação de técnicas permitiu que os cientistas fizessem a inserção de genes de um organismo em outro, o que dava novas características ao organismo receptor.
Todo este cenário de efervescência de novas descobertas científicas veio junto também com um grande debate político e social. Quais as consequências para a saúde da população mundial sobre o consumo desses novos organismos geneticamente modificados? Qual o custo para a produção? Como ficam os pequenos produtores diante deste contexto? Este cenário todo, juntamente com a ideia de que os cientistas estavam criando um novo organismo, fez com que parte de cientistas indagassem a ética e a política na criação dos OGMs, e é aí que entra a relação com o termo “Comida Frankenstein”, ligando todo este contexto ao livro da Mary Shelley.
Lívia: Ainda sobre o termo “Frankenfood” ou “Comida Frankenstein”, a professora Suzi lembrou que essa terminologia parou de ser utilizada em meados de 2014. Uma suposição para a queda do uso desse termo estaria conectada com a relação política que ele acarretava, ou seja, o termo impactava no consumo do produto, afetando a maneira como as pessoas viam aquele alimento, pois faziam uma associação com a ideia de monstro. Mesmo com as ressalvas de parte da população, os alimentos transgênicos continuaram disponíveis e com cada vez mais apoio das grandes empresas, o que facilitou a disseminação tanto das técnicas, quanto da produção desses organismos, fazendo com que o consumo dos transgênicos se popularizassem no cenário mundial. Mas hoje, quase 40 anos depois do surgimento das primeiras plantas transgênicas, qual é o contexto do Brasil?
Suzi Cavalli: A gente, por exemplo, tem em torno de 95% de lavouras de soja só com sementes transgênicas. Então, dá para dizer que praticamente tudo que a gente consumir, que tenha um ingrediente derivado da soja, não é mais convencional, que seria aquele que usa agrotóxicos, mas não é orgânico. Então, pra gente se livrar da soja transgênica, só se utilizar soja orgânica hoje.
Lidia: Como a professora Suzi falou, o cenário atual do Brasil é da transformação do solo do que um dia foram campos e florestas, em terras para a produção de commodities, que são os produtos de origem agropecuária produzidos em larga escala e destinados ao comércio externo.
Suzi Cavalli: A gente também percebe muito claramente a ligação entre o agrotóxico e o transgênico. Porque todo o transgênico que a gente tem no Brasil, ele tá ligado a um processo que é bom para o produtor, para empresa que tá vendendo, e muitas vezes vendendo casado. Quando começou com a Monsanto, a soja RR tinha o seu componente ligado a isso, então ela vendia um combo, vendia as duas coisas, esse é um lado econômico também, quer dizer, o agricultor comprava soja e teria que comprar o outro produto.
Lívia: A professora citou a soja RR e a Monsanto. A Monsanto é uma empresa multinacional líder na produção de sementes geneticamente modificadas e também na produção do herbicida glifosato. Em 2016 ela foi adquirida pelo grupo Bayer, em uma das maiores fusões de grandes empresas da história da Alemanha. A soja RR foi uma das primeiras sementes geneticamente modificadas a serem desenvolvidas. O gene inserido nessa semente produz uma proteína que torna a planta resistente ao herbicida glifosato.
Lidia: Existe uma relação econômica entre as empresas que atuam na produção dos transgênicos com a utilização de agrotóxicos. Segundo um estudo de 2022, as áreas destinadas à sojicultura no Brasil, no Paraguai, no Uruguai e na Argentina, os países agrícolas do Mercosul, somadas ocupam aproximadamente 557 mil quilômetros quadrados, o que é maior que o território da França. Só o Brasil abriga uma área equivalente à Alemanha (em torno de 358 quilômetros quadrados) para o cultivo de soja geneticamente modificada. Esse dado gera uma ligação direta da produção transgênica com o uso de agrotóxicos. Isso porque praticamente 90% dos agrotóxicos que circulam no Brasil são aplicados em cinco tipos de culturas: soja, milho, algodão, pasto e cana-de-açúcar, sendo que a soja transgênica, que tem por característica a maior resistência aos diversos tipos de agrotóxicos ocupam aproximadamente 56,9 milhões de hectares. Segundo estudo do marco da safra de 2022/2023 de grãos no Brasil, 25 anos depois da primeira aprovação do cultivo de transgênicos, o país está na segunda posição do ranking de países que mais utilizam transgênicos nas lavouras.
[trilha transição]
Lívia: A nossa última entrevistada, a nutricionista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo, Elaine de Azevedo, nos contou quais são os atores que agem nessa arena de riscos ligada aos transgênicos e agrotóxicos no Brasil. Ela fez uma análise a partir dos estudos sociológicos, mostrando como a relação de poderes é complexa e como diferentes atores contribuíram para a liberação dos transgênicos sem muitos obstáculos em nosso país.
Elaine de Azevedo: Então, nessas colisões a gente tem os protagonistas de risco, nesse caso as empresas de biotecnologia, e a mais forte de todas era a Monsanto, e também, no Brasil, podemos falar das associações dos grandes produtores de monoculturas para exportação, o chamado agronegócio, que junto com essas empresas se formam, assim, uma instituição patrocinadora que desejava sempre conferir legitimidade e endossar os transgênicos. São os protagonistas mesmo do teatro.
Lívia: Ou seja, é quem está mandando e criando as regras do jogo até agora.
Elaine de Azevedo: Temos também os portadores dos riscos, nesse caso as vítimas, os leigos, que sentem os custos dos riscos através das nossas enfermidades. Porque essa relação não foi exatamente bem-feita e os estudos sobre alimentação e impacto de contaminantes químicos merecem estudos de longo prazo, que não são realizados no Brasil e pouquíssimos no mundo.
Lívia: Enquanto não há incentivo ou disseminação destes estudos, fica cada vez mais complexo mostrar a relação entre o adoecimento de pessoas e o uso de agrotóxicos.
Elaine de Azevedo: Tem também os pequenos agricultores, que são portadores de riscos, que tiveram suas culturas contaminadas ou aqueles que não conseguiram manter o pacote químico do transgênico, e, tiveram então um impacto socioeconômico e até largaram a produção, porque não conseguiam manter as suas terras.
Lidia: Sobre esse impacto, apontado pela Elaine o que ocorre é que os pequenos produtores não conseguem acompanhar os custos do uso de plantas transgênicas. Além da tecnologia em si exigir um investimento alto, a manutenção da produção impõe o acompanhamento de legislações, regularização das terras e dos produtos, que envolve custos e burocracia. Isso leva a muitos produtores menores a desistir da atividade e vender suas terras, assim a concentração de terras acaba ficando na mão das grandes multinacionais. A partir de dados de 2020, disponibilizados pelo IBGE, vemos que apenas 1% dos proprietários rurais controlam praticamente 47,6% das terras agricultáveis do país. Esse é o grande problema da formação social e territorial do Brasil, que é a centralidade da propriedade privada e da concentração fundiária. Dados mais específicos sobre esse assunto podem ser consultados no livro Agrotóxicos e colonialismo químico, da Larissa Bombardi, lançado no ano passado.
Elaine de Azevedo: Outro elemento nessa arena é a chamada autoridade científica, que vai agir em nome da ciência. No caso dos transgênicos, essa ciência vai validar ou refutar os riscos e os mais fortes, favoráveis aos transgênicos, foram aqueles representados pelos cientistas contratados pelas empresas de biotecnologia. Então, eles fazem pesquisa a favor e também tinham os cientistas contra que questionaram os riscos e eram os cientistas basicamente independentes ou que trabalhavam para instituições de pesquisas públicas, como no caso das Universidades. Os dois tinham argumento científicos, mas a ciência de cada um tinha objetivos bem diferentes.
Lívia: Os estudos mais atuais apontam que a área destinada às plantações de commodities ligadas às sementes transgênicas só cresce, enquanto o espaço das agriculturas que realmente alimentam a população vem sendo reduzido ano a ano. O Brasil é um país que comemora safras recordes e está entre os maiores produtores agrícolas do mundo, mas ainda convive com a fome. E o mais paradoxal é que a zona rural é a área mais afetada, tendo um índice de 12% de fome severa, segundo o último Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar da Rede Penssan.
Lidia: As análises dos dados e dos fatos mostram que estamos diante de uma severa contaminação ambiental e humana e convivemos com a fome e a desnutrição. A maior parte da produção agrícola deixou de ser sinônimo de produção de alimentos e passou a ser um negócio lucrativo, concentrado nas mãos de empresas transnacionais, proprietários e especuladores. Esses são os atores principais nesse cenário que a professora Elaine citou e que são apoiados por seus representantes nas câmaras legislativas e nos palácios do governo.
Lívia: Resumindo, as tecnologias ligadas à criação de Organismos Geneticamente Modificados dizem muito mais sobre uma economia internacional, que subordinou globalmente a terra e a agricultura à indústria e aos bancos, do que serviu para a alimentar a população.
[trilha sonora – transição]
Narrador: “Num surto louco de entusiasmo, dei vida a uma criatura racional e devia ter assegurado a ela, no que estivesse ao meu alcance, sua felicidade e bem-estar. Esse era meu dever. […]. As formas dos meus amados mortos flutuam diante de mim, e me apresso para seus braços. Busque alegria na tranquilidade e evite ambições, mesmo que sob a aparente inocência de se distinguir na ciência e nas descobertas. Mas por que digo isso? Fui destruído por essas esperanças, mas outro pode ter sucesso” (Shelley, 2017, p. 227).
Lívia: Essas palavras de Vitor Frankenstein nos fazem voltar para aquelas perguntas que fizemos no começo do episódio: qual a relação da ciência com as consequências de seus atos na sociedade? Isso inclui suas relações não somente científicas, mas políticas e culturais. A professora Elaine, que já falou um pouco sobre a relação da ciência com as indústrias no caso dos Organismos Geneticamente Modificados, vai explicar melhor para nós quais são os desdobramentos dessas relações.
Elaine de Azevedo: A nutricionista Marion Nestlê revela em suas publicações esses vários interesses de pesquisa de especialistas dentro das universidades, com seus vínculos com empresas patrocinadoras de tais estudos, que lhes convém. Quando a ciência e os cientistas percebidos tradicionalmente como neutros são colocados dentro de uma disputa e isso, então, se caracteriza como um processo de politização da ciência. E também pode acontecer uma cientificização da política, ou seja, de se utilizar dela com interesses políticos. As empresas agroalimentares sabem muito bem que a melhor estratégia de marketing para o produto alimentar é ter um parecer científico sobre saúde. Por isso muitas pesquisas são realizadas com financiamento de instituições públicas e seus cientistas e as indústrias também apoiam financeiramente tais pesquisas. É bom dizer que nem sempre esse apoio significa estudos manipulados, mas quando uma corporação, cujo único objetivo é lucro, financia a ciência, então tem mais chance de se enfatizar os efeitos favoráveis aos interesses dessas empresas e provavelmente os resultados negativos tendem ser ignoradas em prol desse lucro.
Lidia: Sabemos que as consequências dessas práticas científicas para a sociedade, para além da discussão ética na ciência, que deve ser questionada, reflete na saúde da população, que muitas vezes não tem informação suficiente e sofre com os sistemas de saúde, que estão sobrecarregados. Então, a questão é que as pesquisas científicas antiéticas endossam um sistema que adoece e piora a qualidade de vida de parte da população. O esquecimento dos fatores de riscos ligados aos alimentos transgênicos pela mídia e o silenciamento dos agentes que poderiam alertar a sociedade sobre essa problemática acabam isentando os responsáveis dessa realidade.
Elaine de Azevedo: Então, resumindo, as controvérsias de pesquisa com transgênicos foram permeadas por interesses políticos, econômicos, os componentes sociais, éticos, por divisões científicas, institucionais, políticas, como eu falei já, e transnacionais, porque teve pressão de outros países para liberar aqui. O que aconteceu é que o tema foi colocado numa caixa preta da ciência por parte da coalizão vencedora e mais poderosa desse debate, que a gente já sabe quem é, né? Então, as instituições que se posicionaram a favor da liberação da semente geneticamente modificadas formaram alianças mais articuladas e foram capazes de promover a liberação oficial do plantio da comercialização e essa colisão, ela classificou as posições contrárias aos transgênicos como ideológicas e as suas próprias como científicas. Então, assim se encerraram os debates e o Frankenfood foi enterrado, mas como todo Frankenfood, ele continua vivo. Porque os riscos não foram dissipados, foram esquecidos.
Lívia: Diante desse cenário, que não parece ser muito animador, nós nos perguntamos quais seriam os caminhos para achar soluções. No campo da engenharia de bioprocessos e biotecnologia, os pesquisadores têm realizado uma nova técnica de edição genética, denominada de Técnica de Melhoramento de Precisão (Timp), gerando produtos que não estão sendo considerados mais como transgênicos e por isso estariam dispensados de todas as etapas de liberação previstas na Lei Nacional de Biossegurança. Há várias técnicas de edição genéticas disponíveis, elas consistem em cortar o DNA em um ponto específico. No Brasil, o mais utilizado tem sido o método CRISPR, que foi aplicado em uma espécie de soja desenvolvida na Embrapa. Nesse caso, os pesquisadores silenciaram o gene, ao cortar o DNA em um ponto específico e tornaram essa variedade de semente resistente à seca.
Lidia: As técnicas de edição gênica são a promessa da vez, mas as coisas não são tão simples assim. Os produtos gerados por ela também precisam ser regulamentados, pois não possuem um histórico de segurança, por ser ainda uma técnica nova. Os pesquisadores não têm todos os dados sobre os possíveis efeitos colaterais, como quando surgiu a técnica que gerou os OGMs. A alteração genética da técnica CRISPR, apesar de ser pontual, pode também influenciar em outros aspectos que não sabemos quais são. Além de um possível efeito adverso dessas variedades na interação com os diferentes seres vivos no meio ambiente, essa técnica ainda continua com a lógica de concentração de patentes na mão de poucas empresas, como também aconteceu com as sementes transgênicas. Portanto, esse ainda é um modelo que historicamente gera fortuna para poucos e torna os agricultores dependentes das grandes corporações. Então, onde fica a ética científica nessa história? Ela acaba sendo barrada pela mediação de grandes corporações?
Elaine de Azevedo: Eu acho que a ética científica é de alguma forma barrada pela própria estrutura da ciência e que foi de alguma forma romantizada por nós essa estrutura, ela é barrada também pela falta de reconhecimento que cientistas são seres humanos que desejam financiamento, poder e reconhecimento e que agem de acordo com seus valores humanos, que são bem variados, como a gente sabe.
Lívia: Então, não adianta a gente pensar que a próxima técnica de edição gênica vai resolver todos os nossos problemas. Nós temos que questionar qual será o comprometimento dos cientistas com um projeto de agricultura e de alimentação mais justa, socialmente e ambientalmente engajadas. Eles vão ficar do lado das empresas, que pagam e financiam suas pesquisas ou vão se posicionar ao lado dos menos favorecidos?
Lidia: Nossa entrevistada ressalta que uma das preocupações da sociologia do conhecimento é enfatizar a relação entre o conhecimento científico e a ordem social, para dessacralizar a imagem da ciência. Os autores dessa área mostram que o conhecimento científico é um sistema de convenções socialmente estabelecido e reproduzido.
Elaine de Azevedo: O cientista, como qualquer outro ator social, é alguém que se utiliza de estratégias persuasivas pra garantir a aceitação dos seus enunciados, e também pra garantir o financiamento pra ele continuar produzir. Então, a imagem dos cientistas ainda é relacionada a pessoas discretas, silenciosas, mas a pesquisa científica é altamente competitiva, compete por atenção, por reconhecimento e por financiamento.
Narrador: “Aprenda comigo – se não por meus preceitos, ao menos pelo meu exemplo – quão perigosa é a aquisição de conhecimento e quão mais feliz é o homem que crê que sua vila natal é o mundo, do que aquele que aspira tornar-se maior do que sua natureza permite” (Shelley, 2017, p.61).
Lívia: Na obra de Mary Shelley, o cientista Victor Frankenstein, ao se deparar com a sua criação, o monstro sem nome, é tomado pelo horror e foge, rejeitando o resultado do seu trabalho. A criatura, ao se sentir rejeitada por seu criador e pela sociedade, se torna violenta, causando a morte de várias pessoas próximas ao cientista. Podemos dizer que a obra funciona como uma fábula moderna dos riscos do orgulho intelectual desmedido. O cientista protagonista do livro representa uma ciência egoísta, que desafia a natureza, sem se preocupar ou se responsabilizar pelas possíveis consequências. De maneira mais ampla, essa fabulação nos chama a atenção para os impactos do progresso científico na sociedade e a responsabilidade dos cientistas diante de suas criações.
Lidia: A relação do cientista com sua criação monstruosa, feita a partir de restos mortais, inspirou a denominação do termo Frankenfood, quando os alimentos transformados geneticamente começaram a fazer parte do nosso dia a dia. Se fizermos uma relação com a história do livro, então, qual será o destino dos alimentos transgênicos, se considerados também como uma criação da ciência que precisa de alguma maneira ser guiada e não deveria ser abandonada, como foi o monstro criado por Victor Frankenstein?
[trilha de transição]
Lívia: Bom, neste episódio a gente apresentou o que tem guiado o desenvolvimento dos Organismos Geneticamente Modificados no Brasil, e vimos que ele tem acompanhado, em sua maioria, as demandas das grandes empresas e dos grandes produtores. No atual cenário, a ética científica e a responsabilidade dos cientistas por esses produtos parecem ter ficado um pouco pra trás. Diante de todos os dados que mostramos e que tem permeado o contexto da utilização das técnicas científicas para a obtenção dos alimentos transgênicos, vimos que ainda não há, por parte da ciência, uma busca expressiva por modos de produção mais saudáveis, que garantam os cuidados com o ambiente, com a saúde do consumidor e, principalmente com o acesso de comida pra todas as populações.
Lidia: Por isso esse debate é tão importante. A literatura tem o poder de nos fazer vivenciar, no mundo ficcional, possibilidades inimagináveis, e assim despertar nosso senso crítico diante da realidade. A ficção científica de Frankenstein continua nos instigando a não perder de vista as preocupações relacionadas aos possíveis impactos do progresso científico na sociedade.
[corta trilha]
Lívia: Esse episódio foi produzido, roteirizado e apresentado por mim, Lívia Pereira.
Lidia: E por mim, Lidia Torres. A revisão é de Mayra Trinca e Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio. O material foi gerado como trabalho da disciplina “Teorias e Métodos da Ciência” e também contou com a participação da aluna e jornalista Mariana Ribeiro. A disciplina foi ministrada pelas professoras Flávia Consoni e Janaína da Costa e o estagiário Alisson Silva, no curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor/Unicamp.
Lívia: Os trabalhos técnicos são de Daniel Rangel e as trilhas sonoras do Free Sound.
Lívia: O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp.
Lidia: Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e também na sua plataforma de podcasts preferida. Procure a gente nas redes sociais. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio e obrigado por escutar!
Lívia: O Oxigênio já tratou desse tema dos transgênicos no episódio 72, quando falamos sobre os 20 anos de pesquisas com transgênicos no Brasil e também no especial da Semana de Ciência e Tecnologia de 2016, quando entrevistamos a pesquisadora Marcia Tait, que falou sobre o papel das mulheres na agroecologia e a resistência delas aos cultivos transgênicos. Ouça lá depois.
Referências Bibliográficas
BOMBARDI, Larissa Mies. Agrotóxicos e colonialismo químico. São Paulo: Elefante, 2023.
“Estrutura Fundiária”. In: IBGE, Atlas do espaço rural brasileiro, 2 ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
OLIVEIRA, Sophia Sartini Fernandes de. O império dos simulacros e a comida “Frankenstein”… tem “gosto”, “cheiro” e “cor” de fruta, mas não é fruta – uma perspectiva antropológica dos sentidos do ato de se alimentar. Interlocução de saberes na antropologia 2. Org. Willian Douglas Guilherme. Ponta Grossa, PR: Atena, 2020.
RODRIGUES, Raquel Mayne; MASSABNI, Vânia Galindo. Frankenstein: leituras de ficção científica em aulas de biologia. Experiências em Ensino de Ciências, v.17, n.3, 2022.
SHELLEY, Mary. Frankenstein. Trad. Santiago Nazarian; Bruno Gamvarotto. Rio de Janeiro: Zahar, 2017 [1818, 1831].
“2022 Overview of Globally Registered, Launched Pesticides and Analysis of High-Value and High-Potential Product Varieties”, AgNews, 16 mar. 2023.
Este é o terceiro episódio da série Termos Ambíguos, baseada na publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia”. O termo tratado neste episódio é Racismo Reverso. A partir do que a professora da UFRJ Fátima Lima escreveu no dicionário, e de entrevistas realizadas com a diretora executiva da ONG Koinonia, Ana Gualberto, da jornalista, diretora da consultoria Ser Antirracista, Paula Batista e do advogado Thiago Amparo, este podcast traz a resposta à pergunta: Racismo Reverso existe?
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Daniel Faria: Em janeiro deste ano, no estado de Alagoas, um homem negro virou réu em ação de injúria racial movida por um cidadão italiano branco. O italiano prestou queixa-crime após ser chamado de, entre aspas, cabeça europeia e escravagista, pelo réu, e teve a denúncia aceita pelo Ministério Público daquele estado, com base na lei N° 14.532, de 2023, que tipifica o crime racial. Porém, no artigo de número 20 desta lei consta que o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que causem constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.
Tatiane Amaral: Essa nota foi publicada no portal de notícias antirrascista Notícia Preta. Os comentários que seguem a nota são bastante indignados, como não poderia deixar de ser. Um disse: “só faltou o italiano ser minoria para a denúncia ter sentido, né?”. Outra pessoa afirmou: “Nada a ver o uso dessa lei para defender colonizador”. Segundo a defesa do homem negro, “Ao usar a lei para punir um homem negro de suposto racismo cometido contra um homem branco, de origem europeia, a ação admite a existência do ‘racismo reverso’. Isso representa uma verdadeira aberração jurídica, nas palavras do advogado”.
Daniel: Taí, a gente chegou ao tema deste episódio: Racismo reverso. Mas, será que isso existe? Faz sentido essa expressão cada vez mais propagada por vozes racistas ou de extrema direita no Brasil e em outros países? Eu sou o Daniel Faria.
Tatiane: E eu sou a Tatiane Amaral. E esta é a série Termos Ambíguos, que traz a cada episódio a explicação de uma categoria das muitas popularizadas pelos discursos da extrema direita em anos recentes. Essas categorias são analisadas nos verbetes da publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia”.
Daniel: Esta série é uma produção do Observatório de Política e Sexualidade, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, e do podcast Oxigênio, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp.
Vamos falar sobre racismo reverso, mas não dá pra falar desse assunto sem antes falar de RACISMO, que o dicionário Aurélio define como preconceito e discriminação direcionados a alguém em razão de sua origem étnico-racial. Embora essa definição seja aparentemente neutra, ela se refere à opressão e à discriminação que resultam da ideologia ou crença na superioridade da raça branca sobre as demais. Ou práticas de subordinação e exclusão baseadas na cor da pele ou origem étnica das pessoas “não brancas”. Ou seja, o questionamento do racismo é o questionamento de uma longa história de opressão, desigualdade e injustiças sócio-raciais.
Tatiane: Há muito tempo as pessoas negras e de outras etnias têm interrogado de frente as teses da superioridade branca que está na origem da escravidão moderna. O combate ao racismo é antigo, e parece não ter fim, porque o racismo parece não ter fim. Desde o século 18, pelo menos, a crítica ao racismo elaborada por autores e autoras negras tem sido fundamental para nutrir a luta antirracista em todo mundo. São exemplos o ex escravizado Olaudah Equiano que lutou pela abolição da escravidão na Grã Bretanha, no século 18, assim como Frederick Douglas e Luis Gama, intelectuais abolicionistas do século 19, nos EUA e no Brasil. Mais perto de nós, temos o movimento Black Power e os Panteras Negras, nos Estados Unidos, mas também o Movimento Negro Unificado no Brasil, cujas vozes intelectuais mais conhecidas foram Abdias do Nascimento e Lelia González. Não fossem essas lutas, estaríamos ainda mais longe de alcançar a igualdade racial.
Daniel: É Tati, mas nem todos compartilham a ideia de que pessoas negras – ou de outras etnias tenham os mesmos direitos que as pessoas brancas. Isso em relação à formação escolar, emprego, moradia, bens, acesso à saúde, à educação superior e tudo o mais que tem sido garantido às pessoas brancas desde sempre. Na verdade, foi quando se anunciaram medidas do estado e de outras instituições para promover a igualdade racial que surgiu essa acusação de Racismo Reverso.
Tatiane: Conversamos com Ana Gualberto, que é mestra em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia e História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ela também é diretora Executiva de Koinonia, organização cuja missão é mobilizar a solidariedade ecumênica e prestar serviços a grupos histórica e culturalmente vulneráveis e pessoas em processo de emancipação social e política. Segundo ela:
Ana Gualberto: Racismo reverso não existe é uma grande falácia quando a gente começa a pensar num racismo, numa possibilidade de aplicar a condição do racismo de uma forma inversa para pessoas que não sejam negras ou de povos originários. A gente vai pensar que o racismo é um sistema de controle e de diminuição da humanidade de pessoas não brancas, então a gente tá partindo de um pressuposto que existe o ser humano e existem uns não humanos. Então como que a gente vai aplicar isso de forma reversa? Só se a gente será se a humanidade e voltar a todos os processos para que os povos negros os povos originários se sentissem num processo de superioridade com relação aos caucasianos e isso não tem condições de acontecer. Não tem condições da gente aplicar com pessoas brancas, né, com essa parcela da sociedade, tudo que aconteceu historicamente, socialmente com essas populações não brancas. É impossível.
Tatiane: A professora Fátima Lima é antropóloga e professora associada do Centro Multidisciplinar da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Centro Federal de Educação Tecnológica, também do Rio. Ela foi a autora do verbete Racismo Reverso no Dicionário de Termos Ambíguos, no qual contou a história dessa categoria, mostrando que de fato surgiu no âmbito dos movimento anti racistas norte americanos, para depois ser desfigurada por setores da sociedade que se opunham a demandas por direitos civis e justiça racial. Vamos ouvir esse trecho do texto na voz de Simone Pallone.
Simone Pallone: “No início dos anos 1960, o termo racismo negro foi usado quase que exclusivamente pela comunidade negra para nomear questões internas ao movimento negro envolvido na luta por direitos civis. Por exemplo, discussões sobre se a comunidade negra deveria sempre votar num candidato negro, ou se ser negra ou negro era condição imprescindível para que uma pessoa merecesse o voto da comunidade. A pergunta que se fazia era: não será isso uma outra forma de racismo?
No final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970, porém, houve uma virada no uso do termo. Isso aconteceu por conta da intensificação das revoltas contra o racismo. Essas mobilizações já começavam a alterar as relações de poder entre pessoas brancas e negras. A partir desse momento, tanto nas relações cotidianas quanto na mídia, o termo “racismo reverso” passou a ser usado por pessoas brancas contra militantes negras e negros, principalmente do movimento black power”.
Daniel: No Brasil, esse termo apareceu mais tarde, em parte motivado pelas primeiras políticas de reparação racial. A Constituição de 1988, por exemplo, aprovada no ano em que a abolição formal da escravidão completava 100 anos, adotou princípios de igualdade e não discriminação, assim como o direito da população quilombola às terras que ocupavam. Mais tarde,em 2003, foi criado o Dia Nacional da Consciência Negra, em 2010 foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial e, em 2012, foi sancionada a Lei de Cotas para o Ensino Superior.
Tatiane: A partir dessas transformações, pessoas brancas passam a recorrer à acusação de “racismo reverso” sempre que seus privilégios se veem questionados ou diminuídos. Um caso recente que teve grande visibilidade foi o ataque ao programa de trainees da rede de lojas Magazine Luíza, criado em 2021 para capacitar pessoas negras. A iniciativa gerou críticas e debates na mídia, nas redes sociais e até mesmo no âmbito jurídico, tendo sido qualificada por várias vozes como racismo reverso. Ou seja, um programa que seria discriminatório das pessoas brancas. Houve até quem defendesse que poderia ser considerado anticonstitucional por supostamente violar o artigo Quinto da Constituição, que trata de violações aos direitos e liberdades fundamentais.
Daniel: O programa da Magalu foi denunciado ao Ministério Público do Trabalho. Nas denúncias, alegava-se que as pessoas brancas haviam sido discriminadas pelo edital do programa. A Defensoria Pública da União, que naquele momento era dirigida por uma pessoa indicada pelo então presidente Bolsonaro, abriu uma ação contra a empresa, acusando-a de estar fazendo “marketing de lacração”.
Tatiane: É, mas apesar do desgaste, prevaleceu a razão, ou seja o princípio de que o racismo está sempre associado a privilégios. Em reportagem publicada no site Conjur, a advogada Christiany Pegorari Conte, professora de Direito e Processo Penal da PUC-Campinas, argumentou que o Programa Magalu não tinha como objetivo impedir outras raças ou etnias de serem contratadas, mas sim, de corrigir a desigualdade racial de acesso à oportunidades de trabalho. Desde então, outras empresas têm oferecido programas semelhantes voltados 100% para pessoas negras ou com parte das vagas para pretos e pardos.
Daniel: Mesmo que as ações ou políticas afirmativas sejam fundamentais, justas e urgentes, há gente que não concorda com elas. O caso da Magalu é um exemplo disso, provocando, inclusive, uma busca intensa pelo termo Racismo Reverso nas plataformas da internet. A gente sabe que há muitos casos em que pessoas negras são preteridas em vagas de emprego, mas ninguém se escandaliza. E quando surge um programa de reparação dessa injustiça, as denúncias explodem. É muito difícil aceitar isso.
Tatiane: Outra situação mais ou menos recente aconteceu numa edição do Programa Big Brother Brasil, da Rede Globo. Uma participante negra foi acusada de praticar RACISMO REVERSO porque chamou a colega de casa de “desbotada e sem melanina”. Esse caso, assim como o da Magalu, são citados no verbete do Dicionário de Termos Ambíguos.
E aí eu me pergunto: é importante saber o que diz a Legislação sobre Racismo? O crime de racismo previsto na Lei 7.716, de 1989 pode ser aplicado a uma pessoa negra? Como essa questão legal é tratada no Dicionário de Termos Ambíguos, Daniel?
Daniel: O dicionário relembra que a partir dos anos 1980 a ideologia da democracia racial começou a ser contestada mais sistematicamente pelos movimentos negros no Brasil. Expostas as realidades do racismo no país, o passo seguinte foi consolidar leis e políticas públicas de reconhecimento, reparação e restituição às comunidades negras e seus descendentes. São exemplos a Lei 7.716, de 1989, conhecida como a Lei Caó, e a Lei 9.459, de 2013. Essas duas leis ampliaram as definições de outra já existente desde 1951, que era a Lei Afonso Arinos, que tratava dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Entre um momento e outro, foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial, que é a Lei 12.288, de 2010. Ao contrário dos dispositivos legais anteriores, o Estatuto Racial não é punitivo, mas reconhece a desigualdade racial como estruturante e estabelece diretrizes de políticas para sua correção e reparação às comunidades negras.
Tatiane: O fato é que o Brasil é bem amparado legalmente. Mas como observa Ana Gualberto, existe um abismo entre ter a lei e aplicá-la:
Ana: Do mesmo jeito que o Brasil é um país maravilhoso em confecção de leis, em construção de leis, ele é absurdamente do não cumprimento das leis. A gente não tem pessoas cumprindo sentença de crime de racismo. A gente não tem uma lei que, inclusive foi ampliada agora a lei caô, né para injúria racial, mas essa lei, ela não é aplicada e a gente não consegue aplicabilidade da legislação desde a sua base, quando a gente chega nas delegacias para fazer o registro de um crime de racismo, um crime de injúria racial, no crime de intolerância religiosa, de ódio religioso. A gente já tem ali uma barreira para o registro disso, então o processo de judicialização, ele praticamente inexistente no Brasil com relação a isso. O que muitas vezes a gente vai conseguir quando são casos que envolvem comunidades é uma recomendação do Ministério Público é uma entrega de cesta básica, só que isso não resolve. Na organização onde eu trabalho a gente monitora crime de intolerância e ódio religioso. A gente faz esse monitoramento desses casos e a gente vê, ou não, a não judicialização desses casos, como isso não avança no processo, então o que que você denuncia.
Daniel: É incrível ouvir essa fala da Ana porque certamente não adianta ter uma legislação que não é implementada, fiscalizada, e que não exige alguma reparação a quem pratica o crime de racismo. Esse processo só dificulta o combate ao racismo. Mas temos que vislumbrar alguma possibilidade de mudança.
Ana Gualberto: E aí, pensando na questão da lei de cotas, quando a lei de cotas é criada, ela é criada numa perspectiva transitória. Perspectiva da implementação da lei de cotas é que haja uma melhora na qualidade de ensino público e no processo de desigualdades raciais dentro do país para que a gente ofereça as mesmas condições e que a gente vire de um momento e fale que realmente não são necessárias cotas porque a gente tem as mesmas oportunidades, só que isso não avança. Enquanto isso não avançar. Vai ser necessário a gente ter cota sim vai ser necessário e a gente precisava ampliar, inclusive é muito complexo no Brasil
Daniel: Ana lembra por exemplo que, muitas vezes, pessoas brancas usam as cotas de concursos públicos dentro das Universidades de forma fraudulenta.
Tatiane: Apesar dos possíveis desvios do objetivo, e de pessoas fraudarem o sistema de cotas, as políticas afirmativas são necessárias para começarmos a corrigir essa distorção de direitos na nossa sociedade. A população negra no país é de 55%. São pessoas que se auto identificam como pretas ou pardas. E essa identificação é, por sua vez, fruto dos movimentos de valorização da cultura ancestral afrodescendente, das políticas públicas de reparação, das leis contra o racismo e do conhecimento produzido nas universidades sobre negritude. A sociedade cada vez mais valoriza a cultura negra como uma cultura plural, diversa e que acolhe outras. Vemos mais pessoas negras fazendo sucesso, ocupando cargos importantes, se formando nas universidades, e essas conquistas fazem toda a diferença.
Daniel: Também conversamos com a jornalista Paula Batista, mestra em Divulgação Científica e Cultural, coordenadora de um projeto muito interessante: a SerAntirracista, uma consultoria sobre a qual ela nos contou muitas coisas.
Paula Batista: Bom, a Ser antirracista é uma consultoria de diversidade, equidade e inclusão racial com foco no letramento racial e na educação antiracista e voltado pra ação, então todas as nossas iniciativas buscam fazer com que a pessoa possa refletir sobre os temas e, a partir disso, também agir no seu cotidiano, aonde está, contra o racismo. Nós atendemos escolas, empresas.
Daniel: A Paula nos disse que a consultoria também é certificadora do Pacto de Promoção da Equidade Racial, iniciativa de uma associação do mesmo nome que se propõe a implementar um Protocolo ESG Racial para o Brasil. ESG pra quem não sabe, não conhece, é a sigla em inglês para Ambiente, Social e Governança, um modelo a ser aplicado pelas empresas privadas.
Paula: “Então o pacto, ele nasceu no ano de 2022, e chama pacto de promoção da equidade racial. Ele vai olhar tanto para os níveis de diretoria, gerência e liderança. E a partir daí então o trabalho da certificadora é verificar se esses dados que foram inseridos na plataforma são reais mesmo. A gente também calcula as ações que essa empresa está realizando, tanto de ações afirmativas internas quanto de investimento social privado para a comunidade, e para que acelere essa equidade racial dentro da empresa.
Tatiane: Como diz a Paula, sem essa iniciativa a probabilidade de se ter uma equidade racial dentro dos níveis hierárquicos das empresas no Brasil era de 100 anos, e com o pacto há a expectativa de alcançar esse objetivo em 20 anos nas empresas. O que já é um avanço.
Daniel: A Paula destaca que o pacto também está criando um índice focado nas mulheres negras dentro das empresas.
Paula: A gente sabe que existe uma interseccionalidade entre raça e gênero. É possível identificar que as mulheres negras sempre estão em desvantagem, os piores salários e piores níveis hierárquicos, né? Então, a gente tem mulheres brancas com maior número de formações nas universidades e em seguida vêm as mulheres negras. Então, já foi o tempo em que se acreditava que nós não tínhamos formação para ocupar esses cargos. Hoje, nós já temos formação, mas as empresas precisam amadurecer esse olhar e refletir para que haja a contratação dessas mulheres nos cargos, principalmente de liderança.”
Tatiane: E essa experiência do pacto leva a outras ações, serve de estímulo. Como comenta nossa entrevistada, ver empresas privadas de sucesso adotando ações para a promoção da equidade racial estimula a população negra a estudar, se formar e lutar por posições melhores. Também mobiliza a cobrança de outras instituições.
Paula: Então, tem alguns movimentos de analisar a questão das cotas no serviço público. Alguns estados já têm isso implementado. O que eu digo é que é um caminho sem volta. Então você já tem esse movimento criado, já tem essas ações que já estão sendo feitas, eu acredito que cada vez mais isso vai sendo amadurecido e, sim, as empresas que já têm esse compromisso social, de responsabilidade social, vai cobrar também das instituições públicas esse compromisso.
Daniel: A educação antirracista e a luta antirracista são modos de dar visibilidade à brutalidade do racismo e nos fazem entender que não dá pra dizer que não tem racismo no país. Já o racismo reverso, voltando ao ponto principal do episódio, não tem como existir. Aqui ouvimos a Paula de novo:
Paula: É impossível que a gente possa conceber uma ideia como essa porque, para que o racismo fosse, vamos dizer, reverso, a gente precisaria mudar totalmente a nossa história. Então, os africanos escravizassem os europeus e trouxessem para cá. E aí se os europeus brancos fossem escravizados e fosse feita toda a barbaridade que foi feita e toda a violência que foi feita. E aí, a libertação também, da forma como foi feita, sem nenhum direito, sem nenhuma garantia de vida e trabalho, sem nenhum Direito Civil garantido para essa população. E nenhuma reparação humana feita pra essas pessoas. E aí essas pessoas assim vivenciariam uma sociedade em que elas são excluídas. Isso seria um cenário de racismo reverso. Então, a gente teria que voltar na história para que existisse isso, por que o que a gente fala isso? Porque as pessoas entendem o racismo como uma discriminação simples, e o racismo não é isso.
Tatiane: Ana Gualberto complementa falando do papel dos meios de comunicação na educação da sociedade e na luta por espaços iguais para todes.
Ana: Eu sou uma pessoa muito otimista, tá? Eu acredito que eu não vou alcançar isso, mas espero que outras gerações alcancem, mas eu quero trazer uma questão que eu acho que a gente tem que estar muito atento, né? Eu tenho 47 anos e eu lutei muito. Eu queria muito ser Paquita, mas eu não podia ser paquita, né? Nunca fui paquita. Vamos pensar o que a gente tem visto hoje. Quando a gente abre a televisão, os meios de comunicação, a gente vai ver pessoas negras, gays, e isso é um avanço, porque a gente lutou muito para isso.
Mas isso é longe da gente destruir a estrutura racista. Isso ainda tá muito longe e eu acho de verdade que para que a gente consiga reverter esse quadro, a gente precisa que os meios de comunicação, eles têm uma participação das grandes empresas de comunicação que detêm a comunicação de massa que a gente tem no Brasil, que são as pessoas que constroem um senso comum. São essas pessoas que seguem construindo o senso comum. A gente vai ver as concessões da comunicação de televisão e de rádio. Tão todas na mão dessas igrejas com discurso extremamente fundamentalista, com discurso racista, com discurso misógino, com discurso homofóbico. Infelizmente são essas pessoas que constroem o senso comum. Se a gente conseguir alcançar esses meios de comunicação, eu acho que a gente consegue avançar bastante sobre isso.
Tatiane: Nossas entrevistadas deixaram claro que o racismo nunca está dissociado das estruturas de poder, ou seja a uma suposta hierarquia racial, na qual a raça, entre aspas, superior tem privilégios e as demais não têm direitos. É por isso que a acusação de “Racismo Reverso” é usada também contra os povos indígenas do Brasil. Por exemplo, na discussão sobre o Marco Temporal, em que são acusados de quererem ou usufruírem de “privilégios” territoriais. Uma acusação que apaga os séculos de massacres e violência contra esses povos.
Daniel: E pra gente encerrar esse episódio, é interessante voltar a reflexões da Paula ainda sobre a falácia do racismo reverso pois ela se relaciona com as críticas e propostas da Ana sobre papel da comunicação nos processos de luta contra racismo nas suas várias manifestações.
Paula: Não há possibilidade de existir na nossa sociedade. Então eu falo que é uma desonestidade quem traz esse tipo de informação, e as pessoas acabam aceitando isso por conta da desinformação. Mas também de uma ideia dentro da nossa sociedade que é o medo das pessoas de perderem o espaço. A gente observa, né, nas dinâmicas do racismo que as pessoas temem que elas percam espaço. Então elas querem sempre e verem melhores do que outras. As pessoas negras terem os mesmos direitos que elas, não são regalias, são os mesmos direitos que as pessoas brancas, ela começa a se sentir ameaçada.
Daniel: Ou seja, a expressão racismo reverso é mesmo uma invenção perversa. Quando ouvir esse termo, ou melhor dizendo, essa acusação, pare e pense: De onde ele vem? Para que que serve? A quem beneficia?
Tatiane: E antes de terminar, temos que fazer uma atualização sobre o caso tratado como injúria racial que apresentamos no início desse episódio. Só pra lembrar, um homem negro foi acusado de praticar racismo reverso ao chamar, por uma plataforma de mensagem, um italiano branco de “cabeça branca, europeia e escravagista”. O caso ainda está em julgamento, mas pedimos professor da FGV SP Thiago Amparo, um esclarecimento sobre o tema. Antes dele tratar especificamente do caso, ele reforçou o que já comentamos aqui sobre o racismo reverso. Vamos ouvir.
Thiago Amparo: Quando a gente fala sobre racismo, a gente tem que, primeiro, ter em mente a ideia principal do racismo que é fundamentado em teorias hierarquizadas de poder, ou seja, que alguns grupos em razão de sua raça, cor, etnia, seriam melhores em algum sentido, mais evoluídos, mais desenvolvidos ou algo parecido, do que outros grupos. Quando a gente tem uma história de séculos de escravidão, você tem história de séculos de desigualdade racializada, desde violência policial até outras desigualdades que compõem esse sistema de racismo.
Então quando a gente fala que não existe racismo reverso, o que a gente está falando é o seguinte: que não existe racismo reverso nesses dois sentidos ou seja, não existem teorias que coloquem pessoas brancas historicamente como subalternas, como menores, como inferiores, né? E também não existe uma história onde você tenha, sistematicamente, pessoas que hoje, em razão de sua raça e cor, são consideradas privilegiadas em algum sentido. Não existe uma história de opressão sistemática contra pessoas brancas, né?, como a gente tem com relação a pessoas negras e outros grupos. Então quando a gente fala que não existe racismo reverso, tá falando que não existem essas duas coisas.
Daniel: Pois é, mas quando uma acusação de racismo reverso chega a um tribunal, como mostramos no início deste episódio, como pode ou deve ser tratada, Thiago?
Thiago: Quando a gente fala de crimes como injúria racial, como o próprio crime de racismo, a gente tem, pela lei, a ideia de que vai punir a ofensa à honra, seja de uma pessoa específica ou de um grupo como um todo. Então, quando eu xingo uma pessoa negra com um insulto racista, que que eu tô fazendo? Eu tô xingando aquela pessoa específica e também posso estar ofendendo um grupo como todo, né? Então, muitas vezes, grupos mais conservadores tentam se valer dessa legislação de injúria racial e de racismo para dizer o seguinte: “Olha, pessoas brancas também podem sofrer racismo”. E aí seria o racismo reverso, porque a sua honra poderia ser violada em razão de sua raça e cor. E aí os tribunais muitas vezes tem se discutido, olha, será que seria plausível, juridicamente, você dizer que há um caso, por exemplo, de injúria racial quando uma pessoa branca é xingada por uma pessoa negra? E aí essa pergunta fica no ar.
Tatiane: É de uma situação como essa que estamos tratando, de um homem negro proferir palavras que ofenderam um homem branco. O professor Thiago continua os esclarecimentos.
Thiago: O caso que tá pendente agora e que vai ser decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, é um pedido de habeas corpus, onde um homem negro é que é acusado de injúria racial, não contra ele, mas contra o homem branco, e ele tá dizendo: “olha eu não cometi nenhum crime aqui, né?”. E aí a gente pode entender de dois jeitos. De um lado que, não, vale para todo mundo, no sentido de que se é racismo, seria esse injúria racial e o crime de racismo seria também possivelmente feito por pessoas negras, quanto por pessoas brancas, porque isso significaria simplesmente uma discriminação de um grupo em relação a outro, não importa a história desses grupos. Ou a gente pode dizer não, não dá, porque racismo reverso no sentido de que essa legislação foi justamente pensada para proteger grupos historicamente marginalizados, foi justamente pensada para coibir esse tipo de teoria que eu falei que teorias de superioridade de um grupo em relação ao outro, que não existe em relação a pessoas brancas, não têm teorias que vão inferiorizar pessoas brancas de forma sistemática como há e houve na história contra as pessoas negras e também você pode dizer, essa lei só faz sentido se a gente aplica para proteger grupos historicamente discriminados, porque justamente é para remediar essa história de discriminação, né?
E aí pode-se tem especialmente juristas negras, sempre enfatizado que quando a gente fala de injúria racial quando a gente fala de crime de racismo, a gente está falando que não é um crime que ele existe no vácuo histórico, né? São crimes que na verdade existem dentro de um contexto e o contexto é de uma histórica discriminação para pessoas negras e o contexto de teorias que impõem essa superioridade pessoas brancas com relação às pessoas negras, é então não daria para a gente aplicar como se fosse dois lados da mesma moeda. De um lado crimes praticados por pessoas negras por pessoas brancas e o inverso de pessoas brancas pessoas negras, porque o que a gente tá tentando coibir aqui é que esse sistema de poder racializado se perpetue. E aí esse caso agora, pendente no Superior Tribunal de Justiça é crucial para poder dizer, olha que se a injúria racial e o crime de racismo, que hoje a injúria racial também é um tipo de crime de racismo, se esses crimes eles protegem grupos historicamente discriminados, ou eles também vão proteger inclusive pessoas brancas contra críticas, né? Porque você pode também, em alguma medida se expandir o conceito dos crimes de injúria racial racismo, toda vez, por exemplo, que alguém escreve uma coluna de jornal criticando pessoas brancas e privilégio branco, sei lá em relação à violência policial, pode ser objeto de uma ação judicial, né? Então justamente isso pode servir como uma arma para que seja utilizado para silenciar pessoas negras, uma legislação que originalmente tinha como ideia central coibir justamente o racismo no país.
Tatiane: Este foi o terceiro episódio da série Termos Ambíguos, realizada em parceria com o Oxigênio, a partir do material do Termos Ambíguos do debate político atual: Pequeno Dicionário que você não sabia que existia, coordenado pela Sonia Corrêa. Esse é um projeto do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UFRJ e contou com vários autores na produção dos verbetes.
Daniel: A apresentação do episódio foi feita pela Tatiane Amaral, doutoranda pelo Programa de Pós-graduação de Relações Internacionais San Tiago Dantas e da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e por mim, Daniel Faria, estudante do curso de comunicação social – Midialogia, na Unicamp, produtor e editor do áudio deste podcast. Tivemos também a colaboração de Simone Pallone, na leitura de um trecho do Dicionário. As entrevistas e o roteiro foram feitos pelo Rafael Revadam, jornalista e doutorando em Política Científica e Tecnológica e pela Simone Pallone, pesquisadora do Labjor e coordenadora do Oxigênio. A revisão do roteiro foi feita pela Tatiane Amaral, pela Nana Soares, que é jornalista e mestre em Gênero e Desenvolvimento da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e pela Sonia Corrêa, coordenadora do projeto Termos Ambíguos, Pesquisadora Associada da ABIA e Co-Coordenadora do SPW.
Tatiane: Você pode nos seguir pra conhecer os próximos verbetes. E se quiser, mande seus comentários para [email protected]. O Oxigênio é um podcast de jornalismo científico produzido por estudantes e colaboradores do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Estamos em todas as plataformas de podcast e nas redes sociais. Basta procurar por Oxigênio Podcast. Se você gostou deste conteúdo, compartilhe com seus amigues.
O Oxigênio apresenta um novo podcast parceiro, o Fish Talk. Desta vez tratando de peixes. Isso mesmo, um podcast sobre peixes! The Fish Mind, ou A Mente do Peixe, é um programa desse podcast com foco na capacidade que esses animais têm de sentir dor e experimentar outros estados emocionais. Vamos ouvir também sobre suas habilidades cognitivas nos episódios desse programa. A ideia é trazer essas informações importantes em um diálogo informal de poucos minutos. O programa geralmente é composto por episódios independentes, mas temas que precisam de mais aprofundamento são apresentados em mais de um episódio. O Fish Mind faz parte de um projeto que é fruto de uma colaboração do Centro de Aquicultura da Unesp (Caunesp) no Brasil com a FishEthoGroup, uma associação sem fins lucrativos que trabalha em prol do bem-estar dos peixes, preenchendo lacunas entre a ciência e as partes interessadas no setor da aquicultura, entre eles: produtores, certificadores, comerciantes, ONGs, decisores políticos e consumidores. A entidade foi criada em 2018 e está sediada em Portugal.
Conheça agora o The Fish Mind Programme e acompanhe todos os episódios. Você vai descobrir muitas curiosidades sobre peixes!
TRILHA SONORA
João: Sabia que, assim como os seres humanos, os peixes podem ter uma boa memória de longo prazo?
Ao contrário da crença popular, esses animais aquáticos podem se lembrar das coisas por muito tempo.
Carol: Neste episódio do programa A Mente do Peixe, vamos falar sobre a capacidade dos peixes de
memorizar coisas, que vai muito além da suposta memória de apenas alguns segundos. Eu sou a Carol Maia.
João: E eu sou o João Saraiva, e começa agora o episódio Habilidades dos peixes: Memória!
TRILHA SONORA
Carol: Você já ouviu falar que os peixes têm uma memória de apenas três segundos? Esta é uma crença popular muito difundida. Mas, na verdade, há evidências científicas indicando que, ao contrário dessa crença, os peixes podem expressar uma boa memória de longo prazo que pode durar meses! E isso não é novidade na ciência. Existem pesquisas sobre isso publicadas há cerca de 34 anos.
João: Este é um estudo muito interessante chamado ‘Long-term memory and recognition of another species in the paradise fish’, que foi publicado em 1989. Os pesquisadores mostraram que um pequeno peixe popularmente conhecido como peixe paraíso (Macropodus operculari) foi capaz de memorizar um peixinho dourado (Carassius auratus) por até três meses!
Carol: Para demonstrar isso, os pesquisadores avaliaram o comportamento exploratório do peixe paraíso em relação ao peixinho dourado. Quanto menos o peixe paraíso explorava o peixinho dourado, mais os pesquisadores consideravam que ele já estava acostumado a ele e, portanto, se lembrava daquele peixinho dourado. E é interessante notar que o peixe paraíso conseguiu memorizar um indivíduo de uma outra espécie!
João: Mais do que isso, este estudo também mostrou que o peixe paraíso foi capaz de memorizar o peixinho dourado por todo esse tempo – três meses – depois de encontrá-lo anteriormente por apenas 5 minutos!
TRILHA SONORA
Carol: Impressionante! E é incrível saber que um estudo mais recente mostrou que a memória formada quando os peixes passam por uma situação ruim pode durar ainda mais tempo. Vamos falar sobre isso.
João: No estudo ‘Long‐term memory retention in a wild fish species Labroides dimidiatus eleven months after an aversive event’, publicado em 2020, os pesquisadores descobriram que a espécie de peixe conhecida como bodião-limpador (Labroides dimidiatus) foi capaz de se lembrar de ter sido capturada por uma rede, em um único evento, por quase um ano!
Carol: Essa pesquisa mostrou que um número significativo de indivíduos silvestres dessa espécie apresentou a resposta incomum de ‘esconder-se’, quando houve a colocação de uma rede para capturá-los. Isso aconteceu apenas em um lugar onde eles haviam sido capturados da mesma forma 11 meses antes.
João: Os pesquisadores levantaram a possibilidade de que foi a combinação da presença da rede e da proximidade do mergulhador que coletava os dados para a experiência que desencadeou a resposta de esconderijo do bodião limpador. Mas, de qualquer forma, isso não nega o fato de que os peixes responderam porque se lembraram daquele evento.
TRILHA SONORA
Carol: Isso significa que um único evento muito aversivo, tal como ser capturado em uma rede, pode resultar em peixes armazenando informações por um prazo bem longo, o que permite que eles evitem ser capturados novamente em uma situação semelhante no futuro.
João: Então, sim, pelo menos algumas espécies de peixes expressam memória de longo prazo assim como os humanos. E não há razão para duvidar que outras espécies de peixes provavelmente também sejam capazes dessa capacidade, especialmente considerando que o peixe paraíso e o bodião-limpador não são espécies muito próximas.
Carol: E essa não é a única habilidade cognitiva incrível que os peixes são capazes de fazer. Muitas outras já foram descobertas, sendo várias delas bem parecidas com o que os humanos podem fazer. Continuaremos falando sobre isso nos próximos episódios sobre as habilidades dos peixes. Fique ligado!
TRILHA SONORA
João: Este episódio foi apresentado por mim, João Saraiva, e pela Carol Maia, que também o coordenou.
Nós somos da FishEthoGroup Association.
Carol: E você pode acompanhar a Associação FishEthoGroup em nossas redes sociais. Nós estamos no Facebook (facebook.com/fishethologyandwelfare), Instagram (@fishethogroup) e no Twitter (@group_fish). Até o próximo episódio!
TRILHA SONORA
ENCERRAMENTO DO FISH TALK
A educação como um todo foi uma das áreas mais afetadas pela pandemia. Com as escolas fechadas, processos de aprendizagem foram interrompidos, assim como os de socialização. Algumas atividades foram suspensas ou feitas de outra forma, e isso teve um impacto significativo na vida desses adolescentes. E é sobre isso que as jornalistas Cristiane Paião e Mayra Trinca vão tratar neste terceiro episódio da série Adolescência. Para saber mais sobre o tema, elas conversaram com Bernardo Baião, coordenador de políticas educacionais da Organização Não Governamental Todos pela Educação e com a Professora Sabine Pompeia, do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo.
CRIS PAIÃO: Olá, eu sou a Cristiane Paião, e começa agora mais um episódio do Oxigênio, o podcast de jornalismo de ciência e cultura do Labjor, o laboratório de estudos avançados em jornalismo da Unicamp.
CRIS PAIÃO: este é o terceiro episódio – de uma série de três – em que a gente mergulha na adolescência. Você pode ouvir os nossos outros dois episódios sobre esse assunto, na sua plataforma de podcasts preferida. E quem me acompanha agora, é a Mayra Trinca. Tudo bem, Mayra?
MAYRA TRINCA: Tudo bem, Cris. Nesse episódio, a gente vai falar sobre o retorno das aulas depois da pandemia, o que as últimas avaliações mostram sobre o desempenho dos alunos, que anda bastante preocupante. A pandemia pode ter passado, mas o impacto dela na educação, principalmente na educação básica ainda vai longe.
CRIS PAIÃO: Exatamente, MAYRA: Claro que a gente não vai aqui ficar só falando de números… O nosso objetivo é entender o que a ciência, a psicologia, e as pesquisas mais recentes sobre esse impacto da pandemia na educação podem ensinar pra gente.
Mas eu já trago um dado bastante importante aqui. Olha só, a porcentagem de crianças do segundo ano do ensino fundamental, que têm geralmente entre 7 e 8 anos, que não sabem ler e escrever — nem palavras isoladas – ou seja, palavras, não são nem frases…. Mais do que dobrou na pandemia. Isso segundo o INEP, que é o Instituto Nacional De Estudos E Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, responsável pelo levantamento desses dados.
MAYRA TRINCA: Pois é, isso é super preocupante. Porque, imagina a continuidade dessa aprendizagem, as dificuldades. A gente precisa falar desse processo, a longo prazo.
E só mais um dado aqui, pra gente já ir pros nossos entrevistados. De cada dez alunos de 7 anos, mais do que 3 não estão alfabetizados. Esses resultados podem ser ainda piores do que os indicados pelo SAEB, que é a prova de português e matemática, porque alguns estados registraram taxas de participação no exame abaixo de 50%. É o caso de Roraima.
CRIS PAIÃO: E esses números, no ensino médio, também são alarmantes, a gente vai falar mais sobre eles daqui a pouquinho… e tudo isso em meio a um debate que tá acontecendo agora: o da reforma do ensino médio. O governo, os deputados, os senadores, ainda não entraram em um consenso sobre como vai ficar a grade de aulas pro ano que vem.
A educação, como um todo, foi uma das áreas mais afetadas pela pandemia. Com as escolas fechadas, processos de aprendizagem interrompidos, assim como os de socialização — que é aquela delícia mesmo da escola, de brincar, de conviver com os amigos, porque tem muita coisa boa na escola. Algumas atividades foram suspensas ou feitas de outra forma, e isso teve um super impacto na vida desses adolescentes. Você que é professora, viu tudo bem de perto…
MAYRA TRINCA: Vi e ainda tenho visto, viu, Cris. A gente pode falar horas aqui sobre isso… As crianças e os adolescentes tendo aulas em casa dependiam muito das famílias, que não sabiam também como lidar com esse processo. E não foi só a aprendizagem formal que foi afetada, né. A gente viu muitos casos de abandono, de abusos e violência, fome, uma série de questões ligadas com o isolamento da pandemia.
[trilha transição]
CRIS PAIÃO: Para entender melhor tudo isso, eu conversei com o pessoal da ong “TODOS PELA EDUCAÇÃO”. Já ouviu falar?
MAYRA TRINCA: Eu descobri quem são eles recentemente, Cris, através da Sabine, que daqui a pouco a gente chama pra essa conversa. Mas sei que eles têm um trabalho muito legal de acompanhar a educação no brasil. Como foi a conversa com eles?
CRIS PAIÃO: Foi ótima! Eu conversei com o Bernardo Baião, coordenador de políticas educacionais. E aí, eu perguntei sobre esses resultados do SAEB, que foram muito ruins pras duas principais disciplinas que q gente tem no currículo, que são português e matemática. Bora saber o que ele disse sobre isso? Vamos ouvir a entrevista.
BERNARDO BAIÃO: “Aqui, tem duas mensagens, que são bastante importantes sobre esse tema. A primeira, é que a pandemia ela alarga os problemas de aprendizagem no Brasil, mas ela não inaugura. O Brasil já vivia problemas de aprendizagem historicamente, é um país com grandes desafios de aprendizagem. Essa é a primeira mensagem, então só de exemplo, quando a gente olha para 2019 e vê os níveis de aprendizagem nota-se, por exemplo, que no Ensino Médio, dos estudantes que estão concluindo aquela etapa em 2019, só um em cada 10 desses estudantes saíram com aprendizagem adequada em matemática. Então isso é uma grande falência do sistema de aprendizagem no Brasil e é algo que precisa ser enfrentada. A segunda mensagem que é bastante relevante sobre esse tema é que talvez os dados mais importantes de aprendizagem, no sentido de números mesmo, que a gente vai ter como diagnóstico da pandemia, não são os dados de 2021. E aqui, por que não 2021? Por dois motivos principais. Primeiro, porque várias escolas naquele momento estavam fechadas ainda, então, você tem um desafio de uma mesma prova aplicada para alunos que estão com escola aberta e alunos que estão com escolas fechadas. Isso traz reflexo no resultado. E segundo, que a taxa de participação nessas provas variou muito naquele período. Talvez o melhor diagnóstico que a gente vai ter da pandemia, e vai ser um ótimo diagnóstico para o país olhar para a educação, sejam os resultados do SAEB de 2023. Então, o resultado da prova realizada no ano passado, cujos resultados vão sair agora no primeiro semestre de 2024.”
MAYRA TRINCA: Bom, esses resultados, como o Baião disse, ainda não chegaram, e é por isso que a gente tem que acompanhar. E faz sentido o desempenho em matemática ter caído mais do que em português, né, as crianças já tendem a ter mais dificuldade e, isolados em casa, a gente quase não usa matemática. E isso torna essa recuperação ainda mais importante nesse momento porque se não for na escola, onde essa galera vai aprender a fazer contas básicas?
CRIS PAIÃO: São muitas questões! Incluindo a falta de professores, pessoas que se formam todos os anos mas que por questões como salário, falta de segurança em sala de aula, entre várias outras, acabam não indo pra sala de aula… pesquisas recentes também estão apontando esse impacto.
MAYRA TRINCA: E têm muitos outros problemas. Por exemplo, a evasão escolar. Muitos estudantes não voltaram depois da pandemia? Ou até voltaram, mas abandonaram a escola de novo porque tinham muita dificuldade em acompanhar as aulas. Isso desmotiva muito. Ou porque precisaram começar a trabalhar, pra ajudar a família.
A gente sabe também, que fora da escola, os adolescentes têm menos contato com educação sexual, então é esperado que aumentem os casos de gravidez que também podem afastar – principalmente as meninas – da escola
CRIS PAIÃO: Exatamente. O Bernardo baião também comentou sobre isso. Vamos ouvir.
BERNARDO BAIÃO: “Algo que se nota é que o estudante que tem maior dificuldade de aprendizagem também tem a maior tendência de sair da escola, de abandonar. Então, são políticas que têm que andar lado a lado aqui para uma garantia de aprendizagem. E a outra garantia, que é que o estudante permaneça na escola. O Brasil vem avançando. Recentemente foi implementada, instituída uma lei, que é o ‘Programa pé de meia”, que é bastante recente, em janeiro desse ano, que tenta endereçar algumas respostas voltadas para garantia da permanência do estudante na escola. Ainda muito restrita ao Ensino Médio, mas ainda falta uma política voltada para recomposição da aprendizagem. Assim, não adianta nada você propor garantia desse estudante ficar na escola se ele não aprende. Então, o estudante tem que aprender, e o Brasil não pode continuar reproduzindo desigualdades e desigualdades de aprendizagem como ocorre hoje.”
[trilha transição]
CRIS PAIÃO: Agora Mayra, uma coisa que o Bernardo baião, do todos pela educação, também me chamou a atenção, foi pro impacto de tudo isso na economia. Segundo ele, tem vários estudos aí mostrando como os alunos que em 2020, estavam na alfabetização, por exemplo, vão continuar sofrendo algum tipo de interferência, de problema, pelos próximos 10 anos. E claro que os estudantes dos outros anos, do ensino médio também vão ter impacto.
O Banco Mundial, por exemplo, destacou que as crianças de zero a cinco anos dessa geração podem ter rendimentos até 25% menores por causa da pandemia, por falta de estudo. E aquelas com idade entre 6 e 14 podem receber até 17% menos como remuneração pelo trabalho, por falta de estudo, de qualificação. Vamos ouvir.
BERNARDO BAIÃO: “Um dado interessante que a gente traz aqui, muitas vezes, é que um estudante que em 2020 ingressou, tava ali em fase de alfabetização na escola, então ele entra na escola, participa desse período da alfabetização em 2020, ele vai ser afetado pelos efeitos da pandemia, por pelo menos 10 anos. Entendendo que nessa trajetória o sistema educacional brasileiro está se recuperando ainda desse tombo que foi a pandemia. Então é um estudante que vai ser, se não tiver políticas públicas endereçadas a esse propósito aqui, ele vai ser impactado e prejudicado por um longo período.
CRIS PAIÃO: O nosso entrevistado, Bernardo Baião, reforça que para enfrentar o desafio do déficit de aprendizagem o país precisa implementar políticas públicas eficientes.
BERNARDO BAIÃO: “Na nossa visão o caminho é através de política pública. E algumas redes, de 2021 em diante, fizeram exercícios de implementação de políticas voltadas para a recomposição das aprendizagens. Então, você olha que algumas redes estaduais e municipais fizeram de alguma forma o dever de casa, ali, de tentar apresentar as respostas políticas que englobam aulas de reforço, tutoria, extensão de carga horária para estudantes com maior desafio de aprendizagem. Tudo isso é relevante. Mas num país tão grande como o Brasil e diverso, com diferenças regionais, raciais, sociais e diferenças de qualidade das escolas mesmo, eu acho que traz aqui para o centro da discussão a necessidade de uma política centralizada. O Ministério da Educação tem que liderar esse processo com o apoio de estados e municípios e trazendo uma política que englobe uma boa formação de professores, que englobe bons instrumentos de aprendizagem, de avaliação da aprendizagem, então aqui a gente tá falando diretamente de avaliações diagnósticas, para você identificar que você tem um aluno com dificuldade você precisa ter um bom instrumento para isso.”
MAYRA TRINCA: E sobre essas diferenças regionais Cris, ele comentou mais alguma coisa?
CRIS PAIÃO: Comentou sim, e olha que interessante: os estados que tiveram as melhores notas, foram os do nordeste! Eu perguntei pra ele o que explica essa diferença, e o que pode ser feito, pra tentar melhorar os índices do resto do país. Vamos ouvir mais um trechinho do que o Bernardo disse.
BERNARDO BAIÃO: “Quando a gente vai discutir essa questão, uma das melhores políticas de anos iniciais e finais é no Ceará, e uma das melhores políticas de Ensino Médio, em Pernambuco. Estados historicamente pobres, então, o que justifica isso? O que justifica? Isso é uma boa pergunta. É muito do que a gente traz aqui no Todos Pela Educação, são exemplos de estados como esses que vem desenhando, vem priorizando a educação. Eu acho que uma mensagem que a gente traz aqui muito forte é que não existem boas políticas públicas, se não há prioridade política. Então, estados onde se nota, não só estado, os municípios, as redes ali municipais, menores, se não tem prioridade política de gestores não anda nada. Eu acho que esse é um debate que caminha, lado a lado da parte técnica, da parte de um desenho da política pública, mas também é a parte política do que se priorizar, e a educação tem que ser a prioridade. E aqui a gente fala que quando a gente tem qualquer dúvida, de discussão sobre política, futuro do Brasil, não passa a educação como prioridade, a gente está fadado ao fracasso inevitavelmente”.
CRIS PAIÃO: Bom, e aí, eu também perguntei como é que a gente tá, então, em termos de políticas públicas nesse momento.
BERNARDO BAIÃO: “Hoje os estudos são muito claros, que a gente precisa de políticas que andem lado a lado. Então, primeiro você tem uma necessidade de uma política de recomposição das aprendizagens liderada pelo Ministério da Educação. Isso é fundamental. O Ministério da Educação precisa liderar esse processo voltado para recomposição da aprendizagem. E existem vários caminhos, o da aula de reforço noturno no contraturno, botar um tutor, monitorias, ampliação. Então, todos os dias colocar o estudante uma hora, duas horas a mais na escola para aprender o que ele deixou de aprender. Colocar os próprios estudantes para ensinar amigos que estão com dificuldade. Então, tem casos no Brasil já de monitoria entre alunos. Uma primeira parte aqui é construir boas intervenções pedagógicas, como a gente chama, para acolher esses alunos. Então é basicamente a aula de reforço e a monitoria, ali, que tem que ganhar força, que não é um ainda é um padrão no Brasil. Hoje é difícil, seja por dificuldade de ‘ah não tem sala de aula’, ‘não tem professor para dar essa aula’, não tem recurso para garantir esse tipo de atividade. Se o aluno fica um tempo a mais na escola, tem que garantir a alimentação. Como a gente garante, se tem dificuldade de garantir o básico? Olha, isso é um Desafio que está sendo enfrentado, e com recurso, com prioridade, com um plano estratégico que é colocar o aluno por mais tempo exposto à aprendizagem. A gente sempre traz uma mensagem, assim, que chega a ser engraçada. Até quando a gente vai explicar para as pessoas de outros países o que a gente chama de ampliação de carga horária para aprendizagem? É difícil eles entenderem, porque para eles isso é chamado de escola, e para gente é chamado de escola integral, porque para eles o tempo ampliado já faz parte da rotina. Não existe isso de ficar quatro, cinco horas na escola. O estudante fica na escola para aprender e quanto mais tempo ele tá ali, mais exposto a aprendizagem ele vai estar”.
[trilha transição]
MAYRA TRINCA: Eu achei a sua entrevista com o Bernardo muito interessante, Cris, porque ela conversa muito com a que eu fiz com a Sabine. Vou deixar ela se apresentar aqui.
SABINE POMPEIA: “Meu nome é Sabine Pompeia, eu sou docente de uma universidade chamada Universidade Federal de São Paulo ou Unifesp e eu estudo várias coisas que tem a ver com comportamento, mas mais especificamente cognição humana, ou seja, processos envolvidos em memória e atenção de pessoas. E nos últimos anos eu tenho estudado mais como isso se desenvolve ao longo da adolescência.”
MAYRA TRINCA: Você conhece a Sabine, né, Cris?
CRIS PAIÃO: Sim! Eu fiz um trabalho como jornalista no laboratório dela, e esse trabalho que deu origem a esta série que estamos apresentando.
MAYRA TRINCA: Legal, Cris! Eu queria saber da Sabine, da perspectiva dela como pesquisadora focada em adolescência, como a gente pode ajudar esses adolescentes nesse momento de readaptação pós pandemia. E ela me contou muita coisa interessante sobre o desenvolvimento do cérebro e das habilidades de aprendizagem e socialização durante essa fase da vida. Escuta só.
SABINE POMPEIA: “Então essa é uma fase super importante em que a gente não se identifica muito com outras pessoas da mesma idade e aprende como se relacionar com elas, né? Não só como identificar as pistas, né, o que que a outra pessoa tá sentindo. Ela tá gostando do que eu tô falando ou não? O que eu tô fazendo é aceitável para ela ou não? Mas também a gente aprender a como a gente regula o nosso próprio comportamento em relação às pistas que os outros estão dando para a gente né? “Ai eu falei demais. Eu percebi na cara do outro. Ah entendi aqui não é pra falar tanto”. Então são um monte dessas coisas que estão acontecendo nessa faixa etária e a gente tem que lembrar que escola não é só para aprender, né conteúdo acadêmico. Escola, talvez até mais importante ainda, seja para aprender a viver em sociedade. Então, isso tá muito negligenciado nessa volta da pandemia porque as pessoas estão muito preocupadas com a questão é acadêmica mesmo, né, de tirar notas e saber os fatos e tô vendo muito pouca atenção para essa questão social”.
CRIS PAIÃO: Nossa, verdade, Mayra! A adolescência tem muito dessa coisa de testar como se relacionar com as pessoas e ir aprendendo com isso. É uma habilidade que a gente vai construindo com o tempo.., e que nós adultos, aliás, também temos que reaprender né? Isso é muito importante.
MAYRA TRINCA: Exato! E a Sabine comentou justamente como o isolamento durante essa fase fez com que os conflitos aumentassem no retorno, na volta às aulas. A gente viu muito disso na escola, como os adolescentes têm tido mais desentendimentos e mais dificuldade pra lidar com eles.
SABINE POMPEIA: “Digamos assim, uma adolescente que tem que aprender como se relacionar com outro quando tem 12 anos aí ele pulou dois anos, nisso aí ele tem 15, quer dizer QUE ele vai ter que aprender isso com 15. Assim o número de conflitos entre estudantes está sendo muito muito maior porque as questões ainda são mais complexas ainda, eles têm mais questões para resolver em relação à Vida e conflitos pessoais e ou estão olhando pro futuro, mas ainda tendo que ter só as ferramentas de contato social que eles desenvolveram dois anos. Então, realmente isso é uma coisa bastante complicada.”
CRIS PAIÃO: Lidar com isso na escola deve estar sendo bem difícil. A gente tem acompanhado aí muitas reportagens sobre bullying, e é por isso que nós, professores, pesquisadores desse tema, também temos que ficar atentos, pra tentar entender e saber como reagir diante dessas situações. E não dá pra dizer que isso não impacta no processo de aprendizagem. Ninguém consegue se preocupar em aprender se estiver com a cabeça cheia de problemas pra resolver. Eu lembro muito de algumas situações que aconteceram, com amigos, na minha época da escola.
MAYRA TRINCA: Pois, é Cris, e isso foi algo que tanto o Bernardo quanto a Sabine comentaram, de que nesse momento os adolescentes precisam de um apoio interdisciplinar, que envolve a escola, os professores e a família.
SABINE POMPEIA: “É muito ruim que isso seja feito dentro de esfera de cada escola, né? Porque daí todo mundo vai estar reinventando a roda e realmente o ideal seria você ter especialistas, as pessoas que conhecem um assunto desenvolver um plano nacional, né, para poder auxiliar e dar o subsídios para isso. Enfim, achar alguma forma de fazer isso, mas é eu, acho bastante grave que cada escola tem que arrumar o jeito dela fazer. Algumas vão conseguir arrumar, outras não, profissionais especializados nisso, que precisam ser consultados e auxiliados a desenvolver esse material, né? Não é qualquer direção ou diretoria ou apoio psicológico da escola, que né que haja na escola que vai conseguir fazer isso aí. Não vai. Mas a gente tem especialistas temos bons especialistas no Brasil”.
CRIS PAIÃO: Essa é uma questão bem complexa mesmo, né, MAYRA: Porque a gente tá falando de política pública, de como os diferentes governos estão ou não olhando pro dia a dia desses estudantes, e não só pros conteúdos.
[trilha transição]
MAYRA TRINCA: Outro aspecto interessante que a Sabine comentou comigo, foi sobre como não houve nenhum tipo de adaptação do currículo ou dos materiais didáticos pra esse momento. Eles só seguiram como se nada tivesse mudado.
CRIS PAIÃO: Por isso que a ideia de aulas extras ou de reforço são importantes, mas também é preciso que haja uma mudança de currículo, de carga horária, uma adoção de sistema híbrido, como o Bernardo baião explicou, na primeira parte do podcast.
MAYRA TRINCA: E tem ainda outro aspecto que mudou nessa volta do isolamento e que também tá muito relacionado com a essa nova geração, que é a questão da concentração e do foco. Não sei você, Cris, mas eu percebi que minha capacidade de concentração e memória diminuíram muito depois da pandemia.
CRIS PAIÃO: Nossa, a minha também. A gente vive na era do excesso de informação, mas isso faz com que o nosso cérebro não consiga dar conta de tudo. Isso sem contar com questões emocionais envolvidas no processo da pandemia , como perder pessoas queridas, ter medo da doença. Eu acho que só agora, depois de uns dois anos aí, dessa fase mais crítica, que eu tô conseguindo de novo, me concentrar, e estudar o que eu preciso estudar. Eu acho que todas essas dicas aí, da Sabine, também valem pra mim.
MAYRA TRINCA: A boa notícia nesse sentido é que, segundo a Sabine, essa é uma habilidade que a gente consegue recuperar.
SABINE POMPEIA: “Isso é uma coisa que volta rápido sabe? Se a gente treinar. É uma das habilidades cognitivas que a gente consegue recuperar rapidamente. Mas aí não pode estar olhando o celular toda hora, tem que estar motivado para fazer aquilo, né? Se a escola tá tentando fazer uma recuperação disso a quantidade de matéria é excessiva para eles. Eles não vão conseguir manter o foco por muito tempo. Isso é uma coisa que a gente tem que dar descanso, né?”
[trilha transição]
MAYRA TRINCA: Eu acho esse finalzinho da fala da Sabine muito importante e queria destacar isso aqui. É claro que os adolescentes precisam melhorar o desempenho na escola, mas a gente tem que deixar um tempo de descanso pra eles. Não dá pra encher a semana de aulas e deixar sem tempo pra lazer ou pra atividades físicas, que são tão importantes nessa fase de desenvolvimento.
CRIS PAIÃO: Ótimo ponto, MAYRA: E a pandemia mostrou muito isso pra gente também, a importância de buscar mais equilíbrio, de tentar se divertir, ficar mais perto de quem a gente gosta. Todo mundo precisa descansar e respeitar os seus próprios limites, seja no trabalho, na escola, ou em qualquer outra área da vida. E eu acredito que isso, mesmo em diferentes classes sociais, também ficou muito evidente. Claro que um estudantes mais humildes, às vezes, não tem condições de ter tantas atividades por falta de dinheiro mesmo. Eu falo, pela minha própria trajetória, porque sempre morei na periferia e era tudo muito caro, também tinha o transporte, que é caro. Mas os adolescentes têm que ter essa pausa pra ver um filme, jogar vídeo game, futebol, fazer alguma atividade e conversar com os amigos.
MAYRA TRINCA: Exatamente, então, uma sugestão que a Sabine deu foi complementar essas aulas regulares com algumas tarefas de casa. Algo que não demande tanto tempo como aulas extras mas que ainda ajudem os adolescentes a refletirem mais sobre esse assunto também.
CRIS PAIÃO: Hmm… gostei! Até porque a gente sabe, por vários estudos sobre aprendizagem, que a gente fixa melhor os conteúdos quando a gente tem a oportunidade de refletir e de criar, em cima deles. E daria pra pedir trabalhos em que os alunos pudessem se divertir de alguma forma também, né? Com quadrinhos, jogos, vídeos, e até podcasts.
MAYRA TRINCA: Isso mesmo! Só que esses trabalhos em casa precisam ter uma mãozinha da família. E aqui eu queria fazer um parênteses rapidinho: quando a gente fala de família, estamos dizendo sobre a rede de apoio dos adolescentes. Que pode ser pai e mãe, mas também pode ser irmãos, família estendida como tios, tias, avós, etc.
SABINE POMPEIA: “Mas também lembrar que adolescente tem muita dificuldade de organização. Então assim, deixar na mão de um adolescente que ele estude no tempo que ele tem livre, que ele se organize é muito penoso e é muito difícil. Não é falta de vontade do adolescente, ele de fato não consegue. Então tem que tentar trabalhar com adolescente um esquema de estudo. Põe a agenda do telefone todas as tarefas, marca todas as provas que você tem na agenda do telefone. Quando que você vai ter que estudar, não põe pra véspera dessa da prova, mas coloca vários momentos para estudar. Então assim, esse tipo de coisa, os adolescentes precisam de apoio. Eu sei que eles são grandes, que eles são inteligentes, que eles estão aprendendo coisa complexa na escola, mas organização e planejamento não tá bom nessa faixa etária, tá, na maior parte dos adolescentes. Então os pais podem ajudar muito ajudando a estabelecer uma rotina. Idealmente que seja feito isso junto com o adolescente não vindo de cima para baixo, né dos pais para os filhos. E aí ficar monitorando se eles estão conseguindo e se não estão conseguindo. E ajudando eles a ajustar esse esquema de estudo pra que ele fica fique possível, né?”
CRIS PAIÃO: Ta aí, a importância dos familiares, de uma rede de apoio, mais uma vez.
MAYRA TRINCA: Sim, Cris, não dá pra escapar de pensar o papel de pessoas próximas a esses estudantes nesse momento. Inclusive para ajudar no desenvolvimento das habilidades socioemocionais.
CRIS PAIÃO: Hmm, isso é legal! E quais foram as dicas que a Sabine deu, de como os pais podem ajudar?
MAYRA TRINCA: Ah foram várias, escuta só:
SABINE POMPEIA: “Em relação a como eles se relacionam com os colegas e amigos é difícil os pais intervirem, né? Especialmente na faixa etária da adolescência porque eles não estão juntos, né. Mas conseguir abrir espaço com os adolescentes para conversar sobre dificuldades que eles estão tendo, né. Contar a história, porque que brigou com uma fulaninho ou ciclano, tentar mostrar outro ponto de vista. Como a outra pessoa pode ter se sentido, é um exercício importante para eles porque demora bastante pra gente, ao longo da adolescência, desenvolver capacidade de empatia e de percepção do outro. A gente é muito focado em si próprio. Isso é natural da adolescência e é só lá pelo final da adolescência que a gente vai conseguir se colocar no lugar do outro, né? Identificar direito as emoções do outro, isso demora muito tempo para maturar. Então, se um jovem tiver a oportunidade de conversar com uma pessoa mais experiente, mais velha, que vá poder tá fazendo esses contrapontos: “Olha, você pensou que talvez tenham se ofendido, você pensou nisso, pensou naquilo.” Isso ajuda o adolescente a aprender a fazer esse processo.”
[trilha transição]
CRIS PAIÃO: Muito legal essa sua conversa com a Sabine, Mayra. Mas antes de fechar aqui o nosso episódio de hoje, eu queria só divulgar, mais uma vez, os quadrinhos da turma da Jovenilda! Que foram feitos no projeto ADOLESENDO, junto com a Sabine, e com o professor marcos moreira e os estudantes de uma escola pública, da zona leste de São Paulo. A ideia é que esses quadrinhos, que trazem os resultados das pesquisas científicas feitas pelo grupo de pesquisa da professora Sabine na Unifesp. Todo esse material tá disponível – de graça – no site do projeto ADOLESENDO, www.adolesendo.info.// e os quadrinhos são super divertidos, você já leu, Mayra?
MAYRA TRINCA: Já sim, Cris, e eles são muito legais, vale a pena procurar! E pra quem é professor, tentar bolar uma aula, por exemplo, usando os quadrinhos pra puxar algum debate em sala de aula. Ou até em algumas situações na nossa casa, enfim, onde quer que a gente precise entender melhor esses sentimentos e esses comportamentos sobre a adolescência.
[trilha transição]
CRIS PAIÃO: Bom… o episódio três sobre os impactos da pandemia na educação brasileira fica por aqui, mas a gente lembra que essa é uma série – com três episódios! E você pode ouvir os outros dois primeiros, nas principais plataformas de podcast ou no site do oxigênio.
As entrevistas e a produção deste episódio foram feitas por mim, Cristiane Paião
MAYRA TRINCA: A apresentação foi feita por mim Mayra trinca e pela Cristiane Paião (@cristiane.paiao).
CRIS PAIÃO: A revisão do roteiro foi feita por Simone Pallone. Os trabalhos técnicos são da Carolaine Valentin Cabral. O oxigênio é apoiado pela SEC – secretaria executiva de comunicação da Unicamp e pelo serviço de apoio ao estudante, o SAE.
MAYRA TRINCA: Todas as referências utilizadas neste episódio, e as entrevistas publicadas com os nossos convidados podem ser encontradas na nossa página na internet, www.oxigenio.comciencia.br.//
CRIS PAIÃO: Os episódios sobre a adolescência fazem parte do projeto “Adolescência e puberdade em pauta: divulgação jornalística das pesquisas realizadas no projeto temático “efeito do desenvolvimento puberal na autorregulação do comportamento e suas relações com as condições de vida atual e pregressa” que eu, Cristiane Paião, desenvolvi com o apoio da Fapesp através da bolsa mídia ciência.
MAYRA TRINCA: E o projeto ADOLESENDO também recebeu apoio da Fapesp, pro desenvolvimentos das suas pesquisas.
CRIS PAIÃO: Gostou do programa? A gente espera que sim, e que você possa entender melhor os sentimentos, os comportamentos dos adolescentes à sua volta, daqui pra frente, seja na sua casa, na sua família, né… Ou no seu trabalho, na sua pesquisa, e tudo com a ajuda da ciência porque tem muitas pesquisas legais, sendo desenvolvidas sobre a adolescência.
MAYRA TRINCA: Obrigada por nos acompanhar e até o próximo episódio!
[trilha encerramento]
OS PEIXES TAMBÉM SOFREM: PARTE 4
ABERTURA DO FISH TALK
TRILHA SONORA
Carol: Você sabia que, assim como os humanos, os peixes não apenas sentem dor, mas também sentem
estresse, ansiedade e até medo? E essas podem ser fontes importantes de sofrimento para os
peixes também…
João: Neste episódio do programa ‘A mente do peixe’, vamos explorar as respostas de estresse,
ansiedade e medo dos peixes. Eu sou o João Saraiva.
Carol: E eu sou a Carol Maia, e começa agora o episódio Os peixes também sofrem – parte 4!
TRILHA SONORA
João: É comum ver pessoas a reclamar que estão estressadas com uma alguma situação difícil que esteja
a causar algum tipo de pressão psicológica sobre elas, certo? Alguns estudos vêm demonstrando
ao longo dos anos que esse tipo de fenômenos também podem acontecer com os peixes.
Carol: Sim, os peixes podem ficar estressados! Existem muitos estudos demonstrando que o cortisol –
hormônio que indica resposta ao estresse em muitos outros animais, inclusive em seres humanos,
– aumenta em indivíduos estressados de várias espécies de peixes.
João: E não são apenas as respostas fisiológicas podem ser observadas nos peixes. Além de outras
substâncias – como glicose ou lactato, que também ficam alteradas em peixes estressados assim
como em outros animais – mudanças comportamentais também podem ser facilmente observadas
em peixes estressados, como a respiração ou batimentos cardíacos acelerados.
Carol: No estudo ‘Caution for using ventilatory frequency as an indicator of stress in fish’, publicado
pelos Drs. Barreto e Volpato em 2004, o registro da frequência ventilatória da tilápia do Nilo
(Oreochromis niloticus) pela observação do batimento opercular dos peixes foi validado como uma
ferramenta confiável para inferir a resposta ao estresse nessa espécie.
João: E já foi demonstrado que algumas espécies, como a própria tilápia do Nilo, mudam a cor do seu
corpo e até mesmo a coloração dos seus olhos em resposta ao estresse! E não podemos esquecer
que, pelo menos nos humanos, a ansiedade pode ser uma potencial fonte de estresse… Será que
os peixes também podem ficar ansiosos? Vamos falar sobre isso!
TRILHA SONORA
Carol: A ansiedade tem sido estudada em peixes ao longo dos anos. Aliás, tem até espécies que são
utilizadas como modelo experimental em estudos sobre ansiedade, como é o caso do peixe
paulistinha (Dano rerio), por exemplo. Esses estudos geralmente avaliam os efeitos ansiolíticos de
agentes farmacológicos ou os efeitos comportamentais de substâncias tóxicas, e investigam as bases
dos comportamentos relacionados à ansiedade em geral.
João: O artigo ‘Scototaxis as anxiety-like behavior in fish’, publicado em 2010, apresenta um protocolo
para avaliar melhor as respostas de ansiedade em diferentes espécies de peixes. A proposta é colocar
um peixe em um compartimento central de um aquário metade preto, metade branco, e observar
o peixe por 15 minutos, registrando o número e a duração das entradas em cada compartimento.
Carol: Os pesquisadores desse estudo mencionaram que os paulistinhas, peixinhos dourados, lebistes
e tilápias são peixes que claramente preferem o compartimento escuro nesse tipo de teste. Assim,
um aumento de sua atividade no compartimento branco, que é indicado por mais tempo e maior
número de entradas ali, deve refletir um comportamento ansiolítico desses peixes!
TRILHA SONORA
João: E quanto ao medo dos peixes? Bom, quando os peixes sentem medo, eles expressam alterações
fisiológicas e comportamentais bem semelhantes aos humanos com medo. Os níveis de cortisol e a
frequência cardíaca aumentam, indicando que o peixe está a enfrentar uma situação estressante.
Além disso, quando estão com medo, os peixes podem expressar comportamentos de fuga ou
mesmo uma espécie de congelamento, parando de se mover!
Carol: O artigo ‘Pain perception, aversion and fear in fish’, que foi publicado pela Dra. Braithwaite e o
Dr. Boulcott em 2007, oferece uma ótima revisão que explora a questão do medo em peixes e sua
relação com respostas aversivas e o sofrimento desses animais.
Carol: É muito interessante saber que os peixes podem ficar bem estressados e que provavelmente
esses animais são capazes de ficar ansiosos e de sentir medo também. Mas essas são todas emoções
negativas. Os peixes também são capazes de sentir estados afetivos positivos e expressar incríveis
habilidades cognitivas. Esses são temas dos nossos próximos episódios do programa ‘A mente do
peixe’! Fique ligado!
TRILHA SONORA
João: Este episódio foi apresentado por mim, João Saraiva, e pela Carol Maia, que também o coordenou.
Somos da FishEthoGroup Association.
Carol: E você pode seguir a FishEthoGroup Association em nossas redes sociais. Nós estamos no
Facebook (facebook.com/fishethologyandwelfare), Instagram (@fishethogroup) e no Twitter
(@group_fish). Vejo você no próximo episódio!
TRILHA SONORA
ENCERRAMENTO DO FISH TALK
Esta é a segunda parte do episódio produzido por Yama Chiodi sobre a pesquisa da antropóloga portuguesa Liliana Gil, sobre as atividades relacionadas à tecnologia do bairro Santa Ifigênia, em São Paulo. O foco desta vez é a escola de reparos de celulares, a Prime, que atrai pessoas de todo o Brasil. Foi nesse espaço que a pesquisadora encontrou não apenas alunos, mas ativistas da tecnologia, como você vai ouvir.
YAMA: No primeiro episódio a gente começou comentando do caos urbano do Santa Ifigênia. Em algum lugar do bairro um forte contraste se apresenta para quem sabe procurar.
Uma escola de conserto de celulares que atrai pessoas de várias partes do Brasil. As cores são pensadas com critérios rigorosos, os espaços organizados, limpos e arquitetados para serem fluidos e funcionais. Seu contraste com o bairro onde está localizada não passa sem algumas contradições. Se na estética ela quer se diferenciar do bairro, sua proposta de formar técnicos capazes de reparar celulares a aproxima do Santa Ifigênia.
Nossa convidada hoje é novamente a antropóloga portuguesa Liliana Gil, que esteve presente na escola como etnógrafa, mas também como aluna de duas diferentes turmas. Em sua pesquisa, refletiu sobre a escola e o bairro de Santa Ifigênia enquanto aprendeu na prática a reparar celulares. Em seguida a gente conversa sobre o trabalho de campo da professora na escola de consertos de celulares Prime, sobre formalidade e informalidade na formação técnica no Brasil e também sobre as polêmicas em torno do termo gambiarra.
Oh… se você caiu de paraquedas neste episódio, recomendo que você escute a primeira parte antes de continuar, ok? Essa é uma parte dois que realmente é uma parte dois. Risos
Eu sou o Yama Chiodi, jornalista do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, e nesse segundo episódio eu converso mais uma vez com a Dra. Liliana Gil, professora da universidade Ohio State, nos Estados Unidos, que fez sua pesquisa de doutorado no Brasil. Contamos em primeira mão, também, que sua pesquisa está em vias de virar livro. Depois da vinheta.
YAMA: Continuando nossa conversa, agora nos voltando à Prime em si. Como foi que conheceu a escola e porquê decidiu fazer dela seu campo de pesquisa etnográfica?
LILIANA: Então, eu achei que ia fazer pesquisa sobre Santa Ifigênia enquanto bairro e entrevistar todo mundo, mas de fato foi difícil fazer esse tipo de trabalho e em parte pelas questões de gênero. Até que numa conversa com um colega, ele me falou nesta escola, ah mas sabes que existe esta escola, talvez fosse um bom ponto de entrada e foi assim, foi um amigo, enfim. Inclusive a primeira vez que fui lá, fui com ele e conversei com os professores, com os instrutores e inclusive expliquei, eu estou a fazer uma pesquisa sobre Santa Ifigênia, seria interessante para mim saber como funciona a escola. Ah, claro, vem ser aluna!
YAMA: E como aluna? Se sentiu acolhida pelos colegas? Era estranho uma antropóloga entre eles?
LILIANA: Achei muito engraçado, porque durante todo o processo eu fiz o curso de reparo e várias vezes falava no meu doutorado e meio que as pessoas me diziam, sim, sim doutorado, claro, quando você perceber, quando você ver, o dinheiro que pode fazer com reparos, deixa o doutorado, deixa a antropologia de lado e vai abrir a sua lojinha, porque é outra dimensão. Não, os meus colegas achavam que bom, bom era eu abrir um box em Lisboa e trazer os meus colegas para lá e trabalhávamos todos juntos na nossa box. Íamos fazer muito dinheiro assim.
YAMA: Já que estamos falando sobre seus colegas. Qual é o perfil dos alunos da Prime? Dá pra fazer alguma generalização demográfica?
LILIANA: Talvez não dê, eu acho que a generalização é que havia pessoas de todas as idades e de todos, inclusive de muitos estados diferentes, tinha um colega que tinha vindo do Acre, tinha colega do Recife, tinha colega, sabe, era assim um conjunto de pessoas mesmo muito diferente, eu fiz o curso com duas turmas diferentes.
YAMA: Mas migrantes ou pessoas que vieram para estudar na escola?
LILIANA: Brasileiros que vieram estudar na escola, não, que moravam lá e vinham fazer o curso uma semana, duas semanas, o tempo que fosse necessário, um mês, dependendo se faziam em formato intensivo ou não, ficavam em São Paulo e depois regressavam para as suas cidades para desenvolver o seu negócio. Então tinha, mas também tinha, tinha jovenzinhos, tipo, sei lá, havia um colega que tinha que ter uns 18 anos, os pais dele pagaram o curso porque queriam que ele fizesse alguma coisa profissional com reparos. Mas também tinha pessoal mais velho que tinha tido uma profissão a sua vida toda, tinha ficado desempregado e estava um pouco a tentar reinventar-se. Há a história de uma mulher em particular da periferia de um dos bairros, penso que da Zona Leste, já não tenho a certeza, mas de um bairro periférico de São Paulo que tinha uma lojinha de acessórios, de celulares e muita gente vinha à loja dela, perguntava se ela fazia reparos, ela não sabia fazer e ela entendeu que havia ali uma oportunidade de negócio. Então foi fazer o curso, tinha inclusive filhos, cuidava dos filhos na sua loja, era cuidadora e estava na loja trabalhando ao mesmo tempo. Então havia assim pessoas de muitas, claro, em termos de classe, diria, classe trabalhadora, talvez média baixa, majoritariamente brancos, mas não apenas. Mas de vários estados, de várias cidades, de vários bairros, não apenas de São Paulo, mas também de fora.
YAMA: No seu artigo você dá bastante importância pro contraste entre a escola e a Santa Ifigênia. Que contrastes são esses?
LILIANA: A Prime enquanto espaço visto de fora e, devo reforçar que este não é o nome verdadeiro, isto é um pseudônimo que eu utilizo para proteger o anonimato dos envolvidos e utilizo sempre pseudônimos, a menos que me peçam explicitamente para utilizar os nomes. O que às vezes acontece especialmente quando você trabalha com artistas ou ativistas que gostam de ser reconhecidos. Mas a Prime, assim, vista a partir de fora, mais uma vez, os edifícios de Santa Ifigênia não revelam o que está lá dentro, o espaço lá dentro era bastante novo, como eu descrevo, o equipamento, os espaços bonitos até, não é? Assim, organizados, tudo era color-coded, com cores muito particulares e era tudo muito intencional, a escolha das cores, a forma como o espaço estava organizado. E depois vim saber que o criador dessa escola era alguém que tinha trabalhado para o McDonald’s, o que eu achei muito curioso, era uma pessoa que trazia algum conhecimento de estandardização, de como tornar as coisas muito eficientes e melhorar o workflow e peço desculpa aos estrangeirismos, mas às vezes não me lembro das palavras.
YAMA: Interessante. Dá um aspecto de formalidade, né? Em meio a um mar de informalidade.
LILIANA: E… sim, parece muito contrastante e eu acho que utilizei a estratégia retórica de enfatizar o contraste no artigo porque facilita ou dá uma imagem, não é? Isso é bom para contar histórias. No entanto, a crítica que se faz a questões de informalidade é que toda informalidade tem as suas formas de formalidade. Então eu não diria que, embora eu esteja falando de Santa Ifigênia como caótica, como isso é o que transparece, não é? A aparência do espaço, mas o espaço tem que ter regras, não é? Tem as suas lógicas e as suas regras. (…) Agora, talvez a Prime esteja a flertar com a estética de outros espaços, que não são talvez espaços de Santa Ifigênia. E é isso que aspiram muitos dos alunos que vão à Prime, que depois sabem que para ter um negócio bem sucedido, o ideal é montar o seu negócio de reparo num bairro de classe alta, onde juntam um shopping caro. E enfim, ali um jogo, claramente, a Prime está tentando preparar os alunos para fazer o máximo de dinheiro possível e dá estratégias para fazer isso. Então há o contraste da estética, o contraste da performance da organização, não é? Santa Ifigênia não precisa de… tem a sua organização, mas não faz a performance da organização da mesma forma que a Prime faz. Eu acho que esses são os contrastes, assim, maiores, mas têm coisas em comum, porque todos esses espaços têm as suas próprias lógicas e regras.
YAMA: Achei curioso isso que você falou. Você falou em performance da organização. No artigo você fala sobre o cuidado que eles têm com uso de EPI, com a limpeza do espaço e até as cores de objetos como luvas de proteção. Você acha que essa organização interna é mais performática que uma questão de segurança? É e não é? Como é? Risos.
LILIANA: É e não é, é e não é. Às vezes dava a sensação que é mais por uma questão de performance, de competência, de organização, de… é e não é. Eu acho que as luvas, o cuidado com a aparência, não é? Tipo as cores da loja, dá toda uma discussão sobre cores que eu acho fascinante, quando se diz que a 9010 é a Apple, que passa alta, e depois há o 30, 20… assim, todos os códigos de cores são pensados de acordo com o público alvo que você tem em mente. (…)
YAMA: Esse cuidado com a organização me faz querer retomar a questão sobre formalidade e informalidade. Perto do Santa Ifigênia, a Prime inspira uma formalidade. Mas os cursos não são algo reconhecido pelo estado, ou formais como o ensino técnico oficial.
LILIANA: (…) Eu fico sempre muito perdida com debates sobre formalidade e informalidade, porque acho que é sempre… tudo é formal e informal até a um certo limite, não é? Acho que na questão particular da Prime, que é interessante e importante notar, é que de fato não é creditada pelo Ministério, não é? O diploma, como estávamos falando agora, o diploma não é um diploma reconhecido pelo Estado brasileiro, pelo… então, mas é um diploma que para as pessoas significa muito, que é um diploma que elas vão colocar na parede e vai estar visível e vai ser uma forma de dar autoridade e dar autoridade à sua profissão. Então, é definitivamente extremamente formal, porque é um programa bem montado, com manuais, com uma estrutura pedagógica, com prática, não é? Tem aulas teóricas, aulas práticas, é extremamente bem montado do ponto de vista pedagógico. Eu achei bastante eficaz da forma como essa informação é passada e o treino é feito. Mas depois funciona completamente à parte do sistema educativo brasileiro, não é? E nesse sentido é absolutamente informal.
Na pesquisa da professora Gil, apareceu essa discussão sobre formalidade e informalidade que me parece muito importante no caso do Brasil. Em dois sentidos diferentes. Primeiro, a gente pode se perguntar, onde começa e onde termina a formalidade e a informalidade nos comércios populares e de grandes centros urbanos, como é o caso do Santa Ifigênia? Segundo, onde será que está o lugar da formação técnica no Brasil? Um aspecto dela é formal e fomentado pelo estado, no sistema S e nos institutos federais, por exemplo. Mas uma parte relevante da formação técnica no Brasil é feita em lugares como a Prime, que não tem qualquer respaldo oficial – ainda que ensine e entregue diplomas. Essas não são perguntas retóricas. São perguntas que eu fiz para um sociólogo do trabalho, o Dr. Tarcísio Perdigão Araújo Filho, que é professor do CEFET-MG. Primeiro, foi isso que ele me disse sobre os comércios populares:
TARCÍSIO: A formalidade urbana foi primeiro pensada como um fenômeno em si, que era observada exclusivamente nos chamados países de terceiro mundo, na década de 60, 70, então se tornou um campo de estudo em si que fazia contraste com a forma com que os países do centro do capitalismo organizavam suas atividades econômicas. Então esse termo virou meio que um grande guarda-chuva para tudo aquilo que não se enquadrava naquele padrão ocidental, vindo da Europa, do bem-estar social, do fordismo. Com o tempo os estudos foram se tornando mais empíricos e comparativos também entre as diferentes realidades dos países e foi vendo que existiam, na verdade, inúmeras gradações entre o que poderia ser formal e informal. Quando a gente vai para fazer um estudo sobre o comércio popular, a gente vê, obviamente, a gente está contaminado por esse olhar de ver o que é formal, o que é informal, o que é legal, o que é ilegal, mas ao nível dos atores ali aquilo está bastante misturado e os atores eles mobilizam essas diferenças. Por exemplo, quando a gente está olhando para ambulantes, alguns têm, por exemplo, as licenças, as permissões do Estado para poder fazer a sua atividade e outros não. E muitas vezes esses signos do que é formal, do que é informal, não têm necessariamente um padrão muito bem determinado. Mas também acho que é importante falar que as práticas informais não estão restritas
aos universos do “empreendedorismo dos pobres”. A gente olha para uma empresa que sonega imposto, por exemplo, uma empresa grande, a loja do shopping lá que você comprou o celular novinho, às vezes está com as relações trabalhistas avacalhadas também.
YAMA: Depois, eu perguntei pra ele especificamente sobre as posições técnicas.
TARCÍSIO: Eu tenho a impressão de que os cursos técnicos, esses dos sistemas federais, esses que a gente está chamando do curso técnico formal, eles dizem muito em respeito a uma política de Estado relacionada à industrialização, ao sentido do desenvolvimento que o Estado está ali desenhando, envolve o aprendizado técnico para você, enquanto uma nação organizar os processos produtivos. Quando a gente olha para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, a gente vê na verdade que a informalidade ocupa um lugar estrutural. Então, nada mais condizente desse tipo de desenvolvimento em que a industrialização no Brasil é fraca, foi historicamente fraca e incapaz de absorver a mão de obra e de não acompanhar a urbanização, enfim, que essa massa de informais também fosse se formar. Então, quer dizer, a busca pelo conhecimento técnico ligado ao celular, que é uma demanda relativamente recente, se a gente pega a história do Brasil, ela acaba tendo maior centralidade, às vezes, do que um conhecimento, por exemplo, os conhecimentos técnicos clássicos da indústria.
YAMA: Eu tenho a impressão que há no Brasil certo preconceito e desvalorização com as profissões técnicas. Você percebeu isso no seu campo?
LILIANA: (…) Eu acho que isso é geral, na verdade, acho que não é uma especificidade brasileira esse tipo de preconceito em relação às profissões técnicas, que eu pessoalmente não tenho e acho que no meu trabalho aquilo que eu tento fazer é mesmo contrapor isso, não é? E mostrar a importância das profissões e a importância de reconhecer e reconhecer não apenas socialmente mas monetariamente. E se você vai para lugares, eu acho, no Brasil a mão de obra é muito barata e a desigualdade permite que profissões técnicas sejam muito mal pagas, mas você vai para lugares, cada vez mais em Portugal é assim e nos Estados Unidos, essas profissões são muito bem pagas. Quando você precisar de alguém para arranjar a canalização, um canalizador, vai ter que pagar muito, as pessoas são cada vez mais raras, um trabalho bem feito requer muito conhecimento técnico e, enfim, são profissões muitíssimo importantes que vão ficar conosco muito tempo.
YAMA: Entre o formal e o informal… lá estava uma professora universitária fazendo cursos técnicos de reparo como aluna. A pergunta que não quer calar é: você se sente capaz de consertar celulares hoje? Será que vamos ver um box da Liliana em Columbus, Ohio para reparar os celulares dos amigos? Risos.
LILIANA: Eu sinto-me mais ou menos, eu acho que não tive a prática que deveria ter tido e uma das coisas que a escola oferecia era depois de você completar o curso tinha direito a frequentar as bancadas e utilizar o equipamento da escola durante já não sei quantas horas, precisamente para praticar e fazer os primeiros reparos, nesse contexto e com algum apoio dos professores. Mas eu sei, o que eu sei exatamente agora é onde encontrar a informação que necessito. Também não, esta informação, muita dela é pública, não é? Eu comentei no artigo que na escola utilizamos muito o website californiano iFixit, fica aí a recomendação. Então, sei onde encontrar a informação, sei que equipamento eu iria precisar, que não tenho, nomeadamente máquina de soldar e tenho alguma confiança que se precisar de um reparo sei qual é o tipo de trabalho que está envolvido e já ninguém me engana. Risos. Eu sei quanto custa aquele trabalho, mas também sei apreciar o que me envolve, não é? Mas não, neste momento, não faço reparos para amigos, lamento. Risos.
YAMA: Mudando um pouco de assunto agora… No artigo você discute brevemente que a escola promoveria dinâmicas anticapitalistas, certo?
LILIANA: Talvez. (…) Mas tem a ver com esta questão do reparo, não é? Por um lado, é uma escola privada que pretende fazer dinheiro, não é? Não é uma non-profit, não é? Tipo, tem essa missão e é bem sucedida daquilo que eu vi e pareceu muito bem sucedida nisso, mas lá está, está a promover e a permitir reparar coisas que… reparar um iPhone, por exemplo, é uma medida, acho, é um comportamento anticapitalista, não é? Vai contra os interesses da Apple, que faz tudo o que pode para manter os seus equipamentos fechados e impossíveis de reparar ou apenas reparáveis pela marca. Inclusive, pratica técnicas muito agressivas de, como se diz, obsolescência planejada. (…) Então, uma escola com uma Prime, aquilo que faz é contrapor isso, não é? E criar alguma resistência no sistema, o que para mim é fantástico. Agora, se me perguntar, mas este é o modelo de escola que queremos, é o modelo geral para o mundo, para o Brasil? Não, não, porque é uma escola privada, é preciso… os alunos, muitos deles pedem créditos para fazer estes cursos, não parece que seja uma situação ideal, mas se conseguíssemos dar esses cursos de forma pública, acho que seria muito, muito interessante, não é?
YAMA: Sem dúvidas. Pegando carona no que você disse sobre as práticas da Apple… Eu acho que percebi no seu artigo certo paralelo entre os contrastes entre iPhone e Android e o Santa Ifigênia e a escola, certo? Ao menos do ponto de vista da escola. Risos. Será que essa metáfora é produtiva?
LILIANA: Sim, sim, sem dúvida. E acho que há uma tentativa de fazer isso, uma tentativa de criar distinção, não é? Toda aquela conversa sobre o oceano azul e o oceano vermelho e onde tem sharks, onde tem, não sei, sardinhas. Há o peixe pequeno e o peixe grande. Então, sem dúvida que aquilo que a escola dá é essas narrativas e essas possibilidades, mas também explica como abrir, no fundo explica como adequar o seu negócio ao público que você tem. (…) Mas eu acho que há essa tentativa, sim, do ponto de vista da escola. A própria escola joga com essas ideias. O mais bizarro de tudo isto, agora um aparte, é que no meio disto tudo é mais fácil consertar Androids, porque a tecnologia é mais aberta, mas no fundo é mais fácil reparar, na verdade, mais fácil reparar iPhones, porque é tudo tão modular que é literalmente encontrar os módulos, só que é difícil comprar os módulos oficiais, não é? Normalmente são cópias.
MAYRA: Oi, aqui é a Mayra e eu vim contar para vocês sobre o lançamento da nova temporada do podcast Mundaréu: De Lua em Lua, nova temporada do Mundaréu sobre menstruação e antropologia. Serão sete episódios, lançados um por dia, durante os dias 22 a 28 de maio de 2024; confira o trailer e ouça no site Mundaréu – Podcast de antropologia ou no seu streaming de áudio preferido. De Lua em Lua é feita para e por adolescentes. São 7 ciclos recheados de histórias descontraídas, com diversas vozes diferentes e compartilhamentos sinceros sobre menstruação, adolescência e dignidade menstrual, que nos ajudam a abrir mentes e corações sobre os desafios e belezas de menstruar. Não perca essa conversa essencial e transformadora. Prepare os fones de ouvido e embarque nessa jornada de ciclo em ciclo, de Lua em Lua!
YAMA: Nesse último bloco deste episódio, a gente retoma um assunto polêmico, que é a conexão entre improviso na produção tecnológica e o conceito de gambiarra. Nós brasileiros estamos super acostumados a usar a palavra gambiarra no nosso dia a dia. Ironicamente… quando eu estava gravando esse episódio eu tropecei no fio e acabei quebrando o adaptador da tomada do meu notebook, que desprendeu o plug da fonte. Prontamente, fui à porta da minha geladeira e usei a superbonder para improvisar um conserto temporário que me permitiu continuar gravando. Um jeito poético de começar uma conversa sobre gambiarra, não é?
Nem sempre esse conceito tem uma conotação negativa, como quando a gente refere a um serviço mal feito, por exemplo. Por vezes a gente usa esse termo para assinalar que um problema foi resolvido de modo criativo, com os recursos que estavam disponíveis. Este segundo sentido acabou caindo nas graças de alguns pesquisadores e pesquisadoras estrangeiros, que viram no termo um conceito que organiza práticas de produção tecnológica fora dos centros do norte global. Mas, no âmbito das ciências sociais, o encantamento dos gringos com a gambiarra nem sempre é bem recebido. Frequentemente cientistas sociais brasileiros de diversas disciplinas alertaram sobre possibilidade de o interesse gringo denotar certa romantização da pobreza e também o problema de querer “descobrir”, entre aspas, um conceito que para nós é absolutamente cotidiano. Curiosamente, foi em um desses debates que eu conheci a professora Liliana, num evento na UFSCAR onde ela apresentava seu trabalho e falava sobre seu interesse no improviso na produção tecnológica. Naquele momento, já com alguns anos de pesquisa de campo no Brasil, ela encontrou lugares bons para pensar tanto em espaços ativistas, caso dos hackerspaces, como em comércios populares, caso do Santa Ifigênia.
YAMA: Agora, assunto polêmico. Eu te conheci em 2018, justamente apresentando um trabalho que articulava o conceito de gambiarra com práticas de improviso na tecnologia. Essa ideia continuou importante na sua pesquisa?
LILIANA: Olha, eu, na verdade, esta pergunta é excelente porque foi assim que a pesquisa começou e provavelmente vai ser assim que a pesquisa vai acabar, deixa eu explicar. Lembro dessa viagem que eu falei em 2014, foi nesse momento que eu conheci a expressão gambiarra, até foi no Garoa, no HackerSpace e foi a partir daí que eu fiquei muito interessada e fui lendo mais sobre o termo. Em Portugal não existe a palavra, ou existe a palavra gambiarra, mas não tem o mesmo significado. Gambiarra, até salvo erro, é as luzes do teatro, é umas luzes que se usa no teatro para iluminar o palco, mas não tem essa noção de improviso conectada. E foi por isso mesmo que eu fiquei muito, muito intrigada, que é o fato que a mesma palavra consegue ter vidas tão diferentes, em espaços tão diferentes e acho que isso tem que… claro que tem que ver com a trajetória do Brasil, com aquilo que é realidade no Brasil, o Brasil pós-colonial, o Brasil que foi colonizado por portugueses, foi um dos países que mais escravizou no mundo, provocou situações de extrema desigualdade, sei lá, infraestruturas que são extremamente precárias, condições de vida, etc. Então é nesse contexto que a palavra, uma palavra ligada ao improviso e à tecnologia ganha toda uma vida que não tem, de fato, não tem da mesma forma em Portugal. Mas enfim, então a pesquisa começou com um trabalho à volta disso e eu escrevi toda a tese doutorado procurando a ideia de improviso em conexão com tecnologia e tentando fazer essas discussões.
YAMA: No evento que eu citei, a professora Catarina Morawska te aconselhou a ter cuidado ao lidar com a ideia de gambiarra enquanto portuguesa.
LILIANA: E na verdade foi muito importante para mim porque eu percebi que algo que me disse foi cuidado, que eu estava utilizando o Buarque de Holanda e uma série de autores assim mais do canon do pensamento brasileiro e ela disse cuidado, com esse tema vai com calma, como portuguesa falando desse tema, vai com calma. E eu achei isso muito importante porque me deixou assim, mas ok, tenho que fazer quase a crítica da crítica, não é? Tenho que pensar na minha posicionalidade em relação a objetos de estudo e como tudo isso se relaciona. (…) E mais recentemente, há toda uma série de autores escrevendo sobre Gambiarra como esta coisa, como uma possibilidade pós-colonial, não é? Tipo, de pensar a produção de tecnologia a partir de outro lugar. E o que eu fiz precisamente na tese, que eu acho que o livro vai acabar sendo, é uma etnografia destas várias formas de pensar sobre gambiarra e tentar, com o máximo de cuidado possível, colocar isso em diálogo com a minha própria posicionalidade enquanto portuguesa.
YAMA: Conversando hoje mais cedo você me disse que está escrevendo um livro baseado na sua tese. O conceito de gambiarra vai continuar sendo importante para essa conversa sobre improviso e tecnologia?
LILIANA: É um termo complicadíssimo, super interessante, que eu não vou resolver. Também não me cabe a mim, acho que as etnografias muitas vezes não resolvem nada, só trazem-as de cima e enfatizam as técnicas, não é? E apresentam-nas. Mas o que eu estou procurando escrever, e já comecei, é um livro que faço uma espécie de mapeamento das várias formas como improviso e tecnologia foram pensadas. Às vezes de forma positiva, outras vezes de forma negativa, alguns dizendo que é, lá está, uma forma pós-colonial de olhar para a produção de tecnologia, outros dizendo que na verdade é uma romantização da pobreza. E também perceber que essas dinâmicas acontecem em outros países, em outros contextos, talvez não sejam tão faladas como no Brasil, e acho que é por isso que o Brasil é tão interessante para pensar esta questão do improviso. Mas o improviso está em todo lado, não é? E está em Portugal, está nos Estados Unidos, está em Singapura, está em todo lado. (…) Eu acho que o meu interesse desde o início na ideia de gambiarra, na ideia de improviso, é sempre numa procura de questionamento das minhas assunções e das minhas assumptions, daquilo que é considerado tecnologia e produção de tecnologia em lugares como Portugal, como nos Estados Unidos, mas também como no Brasil, dentro de certos contextos.
YAMA: Agora, já falando sobre seu livro. Está encaminhado? Já tem uma previsão de lançamento?
LILIANA: Olha, nunca pensei na vida de escrever um livro, mas de fato se você está na academia americana, nas nossas áreas, é algo que é esperado. Então a ideia seria transformar a tese de doutorado no livro. Vou regressar agora em junho, julho, porque de fato o Covid interrompeu uma pesquisa. Eu felizmente consegui fazer muita pesquisa antes do Covid e como disse fui todos os anos desde 2014 e depois passei 2018, 2019, passei 13 meses, sobretudo em São Paulo, mas de fato desde o Covid que não tive a possibilidade de revisitar. Então quero muito voltar, saber como estão as coisas, quero rever amigos sobretudo, sou uma pessoa que faz muita pesquisa de campo através de amizade e de conversar com pessoas e às vezes… Então quero muito reconectar com espaços, com pessoas das quais tenho muitas saudades.
YAMA: Tá certo. Muito obrigado Liliana pela entrevista. Espero que a gente possa conversar de novo quando o livro for lançado.
LILIANA: Muito obrigada, Yama, pela generosa conversa. A quem nos ouviu, muito obrigada por ouvirem. Se tiverem questões, por favor, o meu email é [email protected]. Também podem encontrar online, se googlarem Liliana Gil Antropologia, tenho a certeza que vão encontrar os meus contatos. Estou muito disposta a partilhar artigos, para partilhar ideias. É isso, muito obrigada pela oportunidade, muito obrigada, Oxigénio também.
Este episódio foi roteirizado e produzido por mim, Yama Chiodi. A revisão foi da coordenadora do Oxigênio, Simone Pallone. Quem fez a divulgação do podcast Mundaréu foi a Mayra Trinca. Se você quiser ler o artigo completo escrito pela Dra. Liliana Gil, em inglês, deixo um link para o pdf na descrição.
O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp. Além disso, contamos com o apoio da FAPESP, que financia bolsas como a que me apoiou neste projeto de divulgação do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT.
A lista completa de créditos para os sons e músicas utilizados você encontra na descrição do episódio.
Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e na sua plataforma preferida. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio! Aproveite para deixar um comentário.
Aerial foi composta por Bio Unit; Documentary por Coma-Media. Ambas sob licença Creative Commons.
Os sons de rolha e os loops de baixo são da biblioteca de loops do Garage Band.
A reportagem de Celso Russomanno citada está disponível na íntegra no canal dele no Youtube, no link:
https://www.youtube.com/watch?v=AOGyS7VRGI4
Para ler o artigo da professora entrevistada na íntegra, basta acessar o link:
https://drive.google.com/file/d/100tviO-2c1z7mhzMLYX8ghXrxs2jNXYJ/view?usp=sharing
Santa Ifigênia, bairro central da capital paulista, conhecido pelo comércio de componentes e produtos eletrônicos, é também um lugar de reparos desses produtos. Neste episódio produzido e apresentado por Yama Chiodi, jornalista do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, o bairro é o protagonista. Quem vai falar sobre ele, tratar das atividades que ali são desenvolvidas é a antropóloga portuguesa Liliana Gil, que desenvolve sua pesquisa sobre o Santa Ifigênia na universidade Ohio State, nos Estados Unidos. Liliana conta também como foi a escolha sobre seu objeto de estudo e quais são os resultados encontrados até agora. Este é a primeira de duas partes da história. Acompanhe por aqui.
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Roteiro
[ sons urbanos caóticos aumentam progressivamente]
LILIANA: É um caos, não é? Carros, vendedores de bolo, facas, lojas de eletrônicos, muitos CCTV, sistemas de segurança, vários moços meio que te chamando pra comprar isto e ver aquilo, cê tá interessado nisto?
[ som de caos urbano continua por um instante e depois um fade out até eu começar a falar ]
YAMA: A voz que você escutou é da antropóloga portuguesa Liliana Gil e ela tá falando sobre o Santa Ifigênia, bairro central da capital paulista.
Eu sou Yama Chiodi, jornalista do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, e este episódio é mais uma parceria do GEICT com o Oxigênio.
[ vinheta oxigênio]
[começa a tocar Bio Unit ]
O Santa Ifigênia é um bairro antigo, que vem desde o século XIX, e já mudou muito ao longo do tempo. Mas é pelo menos desde a década de 70 do século XX um pólo de venda de produtos e componentes eletrônicos… e também de reparo. De acordo com o Portal da Santa Ifigênia, catálogo online dos comércios da região, são mais de mil lojas. A maioria delas na rua de mesmo nome. O bairro é uma referência internacional. Antigamente seu público era bastante técnico porque supria uma demanda bem mais específica. Profissionais de vários ramos iam até lá em busca de componentes para a construção e manutenção de máquinas e aparelhos elétricos e eletrônicos. Isso ainda acontece hoje, mas seu público se diversificou muito. Hoje a maior parte dos frequentadores do bairro são consumidores finais em busca de fones, tablets, celulares e outros produtos com preços bem mais baratos. Os produtos são de fontes e qualidades variadas. Há produtos originais importados legalmente como em qualquer loja da cidade, mas há também produtos contrabandeados e falsificados. Iphones de todas as idades e produtos sem marca importados da China. Mas além de tudo, é isso é frequentemente invisibilizado, há vendedores capacitados a ajudar as pessoas a resolver seus problemas tecnológicos dentro de suas possibilidades financeiras.
Você deve se lembrar de um episódio relativamente recente em que o deputado federal e polemista Celso Russomanno visitou o bairro, causando confusão e gerando memes.
[Que correção monetária, aqui é Santa Ifigênia, paizão]. Reportagem completa disponível no canal de Celso Russomanno, no link: https://www.youtube.com/watch?v=AOGyS7VRGI4
A reportagem de Russomanno reforçou um estereótipo classista do bairro, muito difundido entre parte da classe média e entre as elites paulistanas. As contradições características dos comércios de centro estão lá: por um lado, uma linha tênue entre práticas legais e ilegais. Por outro, uma democratização do acesso a eletrônicos para pessoas de baixa renda. E a gente sabe que tanto uma coisa como outra gera incômodos nas partes mais abastadas da cidade. Mas o estereótipo classista que associa o bairro a atividades ilícitas não é o único fato que tem afastado potenciais consumidores da região. Lojistas dizem que nos últimos anos o público tem diminuído consideravelmente – o que eles atribuem à prática de comprar pela internet e ao aumento da violência no centro de São Paulo, fatores que foram potencializados durante e após a pandemia. Reportagem da Folha de São Paulo de setembro de 2023 não exita em dar uma explicação logo na manchete, sugerindo que o esvaziamento do Santa Ifigênia está diretamente relacionado com a dispersão da cracolândia.
Mas o que será que uma antropóloga portuguesa, cursando doutorado nos Estados Unidos, encontrou no Santa Ifigênia que contrasta com as visões classistas sobre o bairro? Você já parou para pensar no Santa Ifigênia como um lugar que PRODUZ tecnologia? É sobre isso que a gente conversa em seguida.
[ separador baixo]
YAMA: Uma trajetória inesperada, como muitas vezes é o caso com antropólogos. Uma antropóloga portuguesa com origens na periferia industrial do sul de Lisboa, vai à universidade e acaba pesquisando ciência e arte, tema que a leva aos Estados Unidos. Já durante seu doutorado, uma escola de verão na Unicamp a impacta profundamente. Não apenas ela muda seu tema para priorizar a produção tecnológica, como passa a pensar no Brasil como um lugar ideal para fazer seu trabalho de campo. Visita a zona franca de Manaus, o complexo do Alemão no Rio de Janeiro e também uma série de espaços de ativismo hacker e de produção tecnológica em São Paulo. Entre indas e vindas ao Brasil, termina fazendo parte de seu campo etnográfico no famoso bairro paulistano de Santa Ifigênia. Mais especificamente, numa escola de reparo de celulares.
Na primeira parte de duas dessa entrevista com a professora Liliana Gil, da universidade Ohio State, nos Estados Unidos, conversamos sobre sua trajetória acadêmica até chegar a São Paulo e conhecemos um pouco melhor essa face menos conhecida do Santa Ifigênia, onde as atividades de reparo ganham centralidade. Na segunda parte, conheceremos uma escola de reparo de celulares que fica no bairro e que foi pesquisada de perto pela professora – como antropóloga e como aluna.
Entre boxes infinitesimais e galerias labirínticas, ela encontrou o que chama de ecologia do reparo. Esse termo que dá nome a esse episódio a gente descobre o que é, já já. (pausa) O que você escuta agora são trechos das nossas conversas.
[ separador baixo]
YAMA: Boa tarde Liliana, obrigado por conversar com a gente hoje.
LILIANA: Sim, muito obrigada Yama pela oportunidade.
YAMA: Imagina, nós é que agradecemos pela sua disponibilidade. Antes de a gente falar sobre o Santa Ifigênia em si, eu queria que você contasse pra gente um pouco da sua trajetória como pesquisadora. Primeiramente, porque você escolheu a antropologia?
LILIANA: Eu comecei a fazer antropologia na Universidade Nova de Lisboa, onde, na verdade, eu venho, meu treino no ensino médio, acho que fala médio, foi em ciências, matemática, biologia, química. Então quando fui para antropologia, primeiro foi um ato de rebeldia, de querer me afastar um pouco das áreas mais óbvias que seria a engenharia e medicina. E eu estava muito intrigada. A antropologia oferecia cursos sobre, não é?, sobre simbologia, sobre política, sobre economia, eu estava fascinada por essas outras áreas. Culturas do mundo… eu nunca tinha viajado nessa época, então para mim era uma forma de viajar pelos livros.
YAMA: Você manteve sua formação toda na antropologia, né? Mas considerando que seu mestrado em Portugal foi na antropologia médica e que você pesquisava arte e ciência, como foi a mudança que te fez acabar pesquisando produção tecnológica no campo de estudos sociais da ciência e tecnologia?
LILIANA: Eu quando comecei o doutorado, achei que ia fazer uma tese sobre arte e ciência. E achei que ia regressar a Portugal e à Europa e fazer pesquisa em laboratórios de sci-art e espaços comunitários de ciência. Citizen-science, eram tópicos que me interessavam muito. Entretanto, teve uma summer school na unicamp precisamente, a 2014, acho eu, que foi organizada pelo Dr. Marko Monteiro, entre outros professores. E foi minha 1a visita ao Brasil e foi nesse contexto que conheci um pessoal tão bom, mas tão bom, tão maravilhoso, que fazia coisas tão interessantes com citizen science, com ciência voltada para a comunidade. Conheci nessa viagem o pessoal envolvido no garoa hacker space em São Paulo, que nessa época fazia coisas incríveis. Isso meio que deu uma volta nos meus projetos e na minha cabeça e voltei assim com uma série de interesses novos e numa discussão com meu orientador, conversando sobre isso, ele meio que me desafiou “então, mas que tal um projeto diferente do que você fez no mestrado? Explorar um outro tópico?”. E foi assim que o projeto se direcionou para questões de produção de tecnologia.
[tom]
YAMA (em off): Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia é um campo interdisciplinar do conhecimento, que se esforça em combinar o conhecimento de várias disciplinas para avaliar, em conjunto, como sociedade e ciência ou como a política e o conhecimento científico estão entrelaçados.
[tom]
YAMA: Dentre muitas possibilidades para pesquisar a produção de tecnologia no Brasil você acabou escolhendo São Paulo.
LILIANA: Devo também dizer que fiz alguma pesquisa em Manaus, na zona franca de Manaus, fiz pesquisa no Rio de Janeiro. Até teve um momento que, devo confessar, que achei que ia fazer mais trabalho no Complexo do Alemão, onde passei um mês numa colaboração com uma organização que era o Barraco 55. E foi muito duro. E depois dessa experiência eu entendi que não ia conseguir fazer essa pesquisa dessa forma, por uma série de motivos. E São Paulo acolheu-me… enfim, nós sabemos porque não é? Foi mais fácil viver em São Paulo e circular em São Paulo.
YAMA: Além dessas questões práticas, o que havia na cidade de São Paulo que te fez achar ser mais interessante para sua pesquisa?
LILIANA: Tem muita tecnologia, não é? E tem esse imaginário pós-industrial que pra mim é muito familiar, tem a ver com o contexto que eu cresci em Portugal, que é na periferia de Lisboa, periferia sul de Lisboa, que era a zona mais industrializada do país (deixou de ser). E um pouco, a razão pela qual meus avós se mudaram para lá nos anos 50 e 60. Então tinha essa coisa meio familiar e eu tenho um carinho muito especial por cidades que tiveram trajetória e tem esse tipo de cultura.
YAMA: Mas a cidade de São Paulo é gigante e tem muitas possibilidades pra se pesquisar a produção de tecnologia. Como você acabou fazendo campo no Santa Ifigênia?
LILIANA: Eu conheci através do pessoal que trabalhava no FabLab Livre, que ia a Santa Ifigênia comprar componentes e materiais. Então o Santa Ifigênia surgiu aí, uma primeira vez. Depois, mais tarde, numa conversa com o colega Dr. Carlos Freire, que agora dá aulas, acho que em Belém. Ele é que mencionou a Prime. Nessa época eu comentei com ele “ah eu gostaria de fazer mais trabalho sobre o bairro, acho esse bairro superinteressante, sei que tem toda uma história de eletrônicos, tem todas essas camadas”. E ele é que me falou da escola de reparos que acabei estudando.
YAMA (off, explicativo): Uma pequena explicação. A prime que a professora acabou de citar, é o nome fictício que ela deu para a escola de reparos que fica em Santa Ifigênia e que ela pesquisou de perto. A gente conversa especificamente sobre a escola no segundo episódio. Dar nomes fictícios a pessoas e lugares pesquisados por etnografia é uma prática comum entre antropólogos e antropólogas para minimizar os potenciais impactos da pesquisa na vida cotidiana dos colaboradores. Mas agora, voltando à conversa.
YAMA: Como foi para uma estrangeira ir ao bairro pela primeira vez?
LILIANA: É um caos, não é? Carros, vendedores de bolo, facas, lojas de eletrônicos, muitos CCTV, sistemas de segurança, vários moços meio que te chamando pra comprar isto e ver aquilo, cê tá interessado nisto? Toda uma ecologia urbana (risos) intensa, não é?
YAMA: Percebiam de cara que era Portuguesa?
LILIANA: Sou portuguesa mas enquanto estou calada ninguém sabe, então não chamo muita atenção. Aliás, tenho histórias sobre o sotaque também muito engraçadas, de as pessoas não saberem identificar. Ah, seu portugues é tão bom, você vem da Colômbia? Do Uruguai? Então não é facilmente identificável. (…)
Mas com o Santa Ifigênia era pra mim esse espaço de muito ebulição, claramente muita coisa acontecendo, é difícil ler… porque ao mesmo tempo os prédios são um pouco degradados, não é fácil entender o que está dentro desses edifícios. As galerias, pois tem uma lojinha, e eu escrevi sobre isso na tese de doutorado, tem uma lojinha que ta lá uma senhora vendendo componentes eletrônicos desde 1965, sei lá. E tem muita coisa acontecendo que se você não passar um tempo no bairro e conhecer o bairro, não sabe que está lá. E eu acho que fiquei muito encantada com, por um lado, essa superfície de caos e muita coisa acontecendo e depois conhecendo essas camadas, abrindo e estudando sobre o bairro e percebendo que há dezenas, há muito tempo e muitas camadas de diferentes negócios, e o fato de que ficou focado em eletrônicos muito interessante. (…) E também um espaço democrático, é um espaço onde muita gente que não consegue um celular vai lá e consegue, um tablet. Tem esse lado democratizante.
YAMA: Santa Ifigênia já teve um enfoque maior na produção, mas hoje, pelo menos na superfície, o que se vê mais é a venda. O que ficou de produção de tecnologia por ali?
LILIANA: (…) Eu acho que o mais próximo que tem de produção é reparo e nós podemos considerar o reparo como uma forma de produção de tecnologia, mas é, neste momento, um bairro com venda de eletrônicos de muitos tipos, seja celulares, seja tablets, seja sistemas de vigilância tipo CCTV. Tem também muitas componentes, então pequenas partes que você pode comprar para reparar ou para montar os seus eletrônicos. Tudo isto novo e usado. Então tem, sim, partes importadas, sejam da China, depois tem toda uma discussão sobre o que vem através do Paraguai, que provavelmente são cópias. Também tem material importado de formas mais ortodoxas e depois tem material usado, também adquirido de várias formas. Inclusive, lembro-me que uma das formas de aquisição de componentes era através de… Era umas famílias que compravam bens, não sei se era a polícia federal, mas basicamente bens confiscados que são comprados em monte e depois desmontados e revendidos. Então tem de tudo. Tem vendedores de rua, camelôs, mas tem muita lojinha também mais formal, outro tipo de negócio. E, sobretudo, dentro desses prédios, desses edifícios mais antigos, que por fora parece que não têm nada, você entra e são galerias imensas de pessoal vendendo coisas, fazendo reparos, etc. Então é um misto. Há o bairro visto a partir da rua e há o bairro visto por dentro desses edifícios, que às vezes são difíceis até de circular lá dentro. Então uma das estratégias que eu tinha durante a pesquisa, eu às vezes contactava pessoas para irem comigo, tipo usuários que conheciam bem Santa Ifigênia e nós íamos passear juntos pelo bairro e pelas lojinhas.
YAMA: Você falou algo interessante que a diferença do bairro visto de fora de dentro dos edifícios. Dentro dos edifícios seriam os labirintos de boxes que você cita no artigo?
LILIANA: Sim, é sobretudo boxes dentro das galerias. Sim, sobretudo boxes. Sim, são espaços que são divididos e subdivididos e sub-sub-sub-subdivididos e subalugados.
[tom]
YAMA (em off): Foi nessa parte da conversa que eu perguntei pra Liliana sobre algo que é central no artigo dela… um termo que me chamou atenção desde início e que ela usa pra descrever o que ela viu em campo… ecologia do reparo.
[tom]
YAMA: O que é que você está chamando de ecologia do reparo? Se isso é um termo que surgiu com sua pesquisa ou se é um termo corrente na literatura, você pode falar um pouco sobre isso?
LILIANA: Sim, eu acho que não é um tema corrente da literatura. A razão pela qual eu puxei esse termo de ecologia é porque de fato o reparo para acontecer depende de todo um ecossistema. Não existe reparo ou é difícil ter reparo sem haver uma ecologia e um ecossistema que sustente esse reparo, seja através de materiais, seja através de equipamentos, seja através de contactos, seja através de conhecimento. E o conhecimento às vezes até é parte mais difícil de conseguir adquirir e obter porque vivemos numa sociedade em que os rapazes são ensinados desde pequeninos a gostar de eletrônicos e de fazer reparos e a pensar sobre eles próprios como seres técnicos e as meninas não. Eu acho que isso cria uma série de obstáculos.
YAMA: Aham
(pausa)
LILIANA: Mas a ecologia do reparo tem que ver mesmo com esta ideia de que o reparo depende de um ecossistema, depende de uma série de outras coisas acontecendo à sua volta para permitir que o reparo aconteça. E eu acho que Santa Ifigênia é de facto uma ecologia do reparo comparada ao lugar, sei lá, como Silicon Valley, enfim, também terá o seu reparo, mas se viveres num ecossistema que policia muito o reparo e não providencia os equipamentos, o conhecimento para renovar eletrônicos, o reparo não vai acontecer. Uma das coisas que eu falo muito no artigo é a importância das networks. Um dos motivos pelos quais as pessoas procuravam a escola que eu estudei é porque entravam na network de fornecedores, de equipamento e isso são redes muito difíceis de entrares, nas quais entrares. Então era nesse sentido, a ecologia do reparo. E claro, justamente, é o lado da ecologia, quanto mais repararmos, não é? Há um lado benéfico, mas sim, achei que era apropriado a noção da ecologia.
[tom]
YAMA (em off): Numa cultura econômica pautada pela obsolescência programada, as práticas de reparo se tornam práticas de resistência. Tornam o acesso à tecnologia possível para as pessoas de menor poder aquisitivo e, em sua devida proporção, reage aos planos das grandes empresas de tecnologia ao prolongar o tempo de vida dos eletrônicos, o que, por si só, dá uma dimensão ambiental para o termo ecologia. Reconhecer o Santa Ifigênia como o local de uma ecologia do reparo é resgatar uma dimensão invisibilizada do bairro e que reconhece sua importância social, cultural e econômica. E, porque não?, até mesmo ambiental.
[tom]
LILIANA: Santa Efigênia é quase… Estou a pensar agora num buraco negro com metáfora, mas talvez não seja a melhor. Mas é muito condensada, não é? É a sensação que você está num espaço que condensa todos esses elementos do ecossistema de uma forma que talvez não encontre noutros lugares com facilidade. (…) Acho que ninguém olha para Santa Ifigênia com esse carinho. Ninguém olha para Santa Ifigênia como… ou pouca gente reconhece aquele espaço como um espaço de produção de tecnologia. E acho que é parte do meu trabalho tentar puxar contra isso e tentar mostrar. Não, puxa, tipo… Sim, talvez não seja shiny, já não é aquela coisa que foi há anos atrás, mas continua produzindo tecnologia e tem essa genealogia. E é importante que a gente valide e reconheça o trabalho destas pessoas como produtores de tecnologia também
YAMA: Mudando um pouco de assunto agora… como todo espaço nos centros urbanos, Santa Ifigênia guarda contradições, diversidade e diferenças. Vou começar te perguntando sobre questões raciais. Você me disse que mais cedo que há uma história da presença negra do local que é um pouco esquecida, apagada.
LILIANA: Há toda uma série de trabalhos que está sendo feito agora sobre territórios negros em São Paulo. O Instituto Bixiga está fazendo alguma pesquisa sobre o passado negro de Santa Ifigênia, que é algo que eu não conheço, porque é muito ligado à igreja. E então essas camadas é um bairro de eletrônicos com muita história, mas essa história vai assim ainda mais profundamente no tempo e tem todas essas dimensões que o centro de uma cidade como São Paulo tem.
YAMA: Você percebeu esse componente racial do Santa Ifigênia de hoje?
Eu não… sim, não. Eu vi muitos imigrantes e percebo essa componente racial. Há claramente uma divisão de trabalho, não é? Aqueles que trabalham na rua, aqueles que trabalham em lojas, os donos de lojas, que normalmente são brancos ou que serão, enfim, de origem imigrante, mas…Então, sim, eu acho que é também um microcosmos daquilo que é São Paulo, não é? Está lá.
YAMA: Na sua pesquisa você comenta em vários momentos como importavam as diferenças de gênero no bairro. Isso tanto no fato de você como antropóloga pesquisando num lugar predominantemente masculino, como nas próprias organizações locais. O que você pode nos dizer sobre as diferenças de gênero no Santa Ifigênia?
LILIANA: É assim, em geral estes espaços são muito masculinos e sobretudo na sua primeira aparência, não é? Na rua, são espaços muito masculinos os lojistas, as pessoas que estão na rua chamando clientes, há todo um… é um espaço que parece muito masculino. O que eu acho… o que eu aprendi com o tempo é que existem mulheres, mas elas talvez não estejam nos lugares mais óbvios ou não seja tão fácil de encontrar. Eu tive um momento em que eu precisei de soldar um fone que estava estragado e pensei, bem, vou a Santa Ifigênia resolver este problema, vai servir de pesquisa de campo e de coisa útil para fazer. Falei com um amigo interlocutor que conhecia bem Santa Ifigênia, fomos juntos, e ninguém queria soldar o meu fone porque era um trabalho muito minucioso e difícil. Falavam de uma tal de Priscila, tem que ir à Priscila, tem que ir à Priscila, falem com a Priscila que ela resolve. Bem, a Priscila foi dificílima de encontrar, mas a Priscila é uma mulher que faz reparo em Santa Efigênia. Estava numa box, numa galeria, parecia um labirinto, mas ela está lá e está a trabalhar, inclusive tinha mais mulher na equipa dela, na box dela. Então, as mulheres estão presentes, mas talvez não sejam nos lugares mais óbvios, talvez não sejam da forma mais pública, e o espaço enquanto mulher a fazer pesquisa às vezes se intimidava, não é?
YAMA: Você se sentia intimidada enquanto pesquisadora fazendo campo por lá?
LILIANA: Eu parto sempre, eu nunca penso muito nessas questões até me sentir intimidada. Não parto do princípio que vai ser difícil por ser mulher, nem… aliás, a minha pesquisa é sobre tecnologia e estou perfeitamente habituada em estar em espaços muito masculinos, infelizmente é assim que acontece, mas às vezes era, sim, era duro e, sobretudo, fazer entrevistas com pessoas. Eu sentia que às vezes, sabes, mulher, portuguesa, era um bocadinho difícil, era difícil estabelecer contacto, era difícil manter a conversa, sentia muitas vezes que me sentia um bocadinho minorizada, não é? E embora eu às vezes utilize essa estratégia, porque acho que para falar de tecnologia muitas vezes até dá jeito fazermos um pouco de burros para conseguir ter as conversas, nesse contexto de Santa Ifigênia às vezes foi muito difícil.
YAMA: E na escola de reparo que você pesquisou mais de perto, era a mesma situação?
LILIANA: O que eu encontrei nessa escola de reparo foi um espaço muito mais amigável para mulheres, não é? Muito mais acolhedor para pessoas que não são as pessoas típicas que frequentam o bairro.
[tom]
YAMA: Vou interromper a nossa conversa um pouquinho agora. Agora que já temos alguma dimensão do que seja o Santa Ifigênia e que sabemos que há uma ecologia do reparo no local, seguimos para a segunda parte desta entrevista, onde olhamos em detalhe para a Prime, a escola de reparos de celulares onde a Liliana pesquisou, mas também frequentou como aluna.
[baixo]
[começa Documentary]
Este episódio foi roteirizado e produzido por mim, Yama Chiodi. A revisão foi da coordenadora do Oxigênio, Simone Pallone. Se você quiser ler o artigo completo escrito pela Dra. Liliana Gil, em inglês, deixo um link para o pdf na descrição.
A edição do áudio foi feita por *****. . O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp. Além disso, contamos com o apoio da FAPESP, que financia bolsas como a que me apoia neste projeto de divulgação do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT.
A lista completa de créditos para os sons e músicas utilizados você encontra na descrição do episódio.
Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e na sua plataforma preferida. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio! Aproveite para deixar um comentário.
[Termina Documentary]
Aerial foi composta por Bio Unit; Documentary por Coma-Media. Ambas sob licença Creative Commons.
Os sons de rolha e os loops de baixo são da biblioteca de loops do Garage Band.
A reportagem de Celso Russomanno citada está disponível na íntegra no canal dele no Youtube, no link: https://www.youtube.com/watch?v=AOGyS7VRGI4
Para ler o artigo da professora entrevistada na íntegra, basta acessar o link: https://drive.google.com/file/d/100tviO-2c1z7mhzMLYX8ghXrxs2jNXYJ/view?usp=sharing
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