Entrevistas sobre todos os temas relacionados ao meio ambiente. Análises sobre os principais desafios no combate ao aquecimento global, à poluição. Iniciativas para proteção dos ecossistemas e reflexão sobre políticas de prevenção de catástrofes naturais e industriais.
A 29ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP29) se inicia na segunda-feira (11), em Baku (Azerbaijão) sob a sombra de um novo governo de Donald Trump nos Estados Unidos. O pessimismo gerado pela notícia deixa ainda mais distante o principal objetivo da cúpula: chegar a uma nova meta de financiamento para os países em desenvolvimento conseguirem enfrentar e se adaptar à crise climática.
Lúcia Müzell, da RFI em Paris
Durante a campanha, Trump prometeu não apenas que voltaria a retirar o país do Acordo de Paris sobre o Clima, como também sairia do organismo da ONU que promove essas negociações internacionais, a UNFCCC, e não cumpriria outros tratados ambientais. Assim, até os repasses americanos para o Fundo Amazônia podem estar ameaçados, ressalta Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, que reúne cerca de 100 organizações socioambientais brasileiras.
"Impacta muito nas negociações, porque os Estados Unidos são os maiores poluidores históricos do planeta, são os que mais devem nesta conta do clima e são também os que mais podem fazer nesta questão climática”, salienta. Esta não é a primeira vez que a eleição americana joga um balde de água fria sobre a Cúpula do Clima. A COP 22 de Marrakesh, no Marrocos, aconteceu logo depois da primeira vitória do bilionário, no pleito de 2016.
"Temos agora um ambiente muito mais difícil para uma COP que já estava extremamente complicada. Tem países que já não queriam fazer nada, e com uma situação dessas nos Estados Unidos, eles encontram uma desculpa perfeita”, observa Astrini.
O Acordo de Paris, assinado em 2015, previa que, de 2020 a 2025, as nações industrializadas entregariam US$ 100 bilhões por ano para as em desenvolvimento – compromisso que não foi cumprido. Este ano, os 195 países devem atualizar o valor que entrará em vigor a partir de 2026 e definir por quanto tempo – além de estabelecer os critérios que serão incluídos no cálculo. O tema mais polêmico é se a base de países doadores deve ser ampliada, com a inclusão de grandes potências emergentes, como a China, em primeiro plano, mas também o Brasil.
O grupo de países mais pobres e emergentes, entretanto, chegará à cúpula determinado a rejeitar qualquer decisão neste sentido, salientou o negociador-chefe do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, André Corrêa do Lago, em briefing em Brasília. O Acordo de Paris determina que cabe às nações desenvolvidas arcarem com o custo – por serem as responsáveis históricas pela explosão das emissões de gases de efeito estufa, que causam o aquecimento do planeta. A insistência em renegociar estes termos coloca em xeque a confiança dos países em desenvolvimento no próprio tratado.
“Eu considero essa discussão razoavelmente inútil, porque o G77 + China está absolutamente fechado em relação à possibilidade de a solução para essa discussão ser o aumento do número de países doadores. A solução é uma maior transparência de como esse dinheiro vem e como a gente vai defini-lo, e um novo número, que represente, por parte dos países desenvolvidos, a mesma convicção de que nós estamos vivendo uma urgência climática e que eles têm quando pedem as nossas NDCs [Contribuições Nacionalmente Determinadas]”, frisou o embaixador.
"A urgência serve para o que nós temos que fazer, mas não serve para o que eles têm que fazer. Então, é uma discussão que está ‘animada’", ironizou Corrêa do Lago.
O ambiente de negociações tende a ficar ainda mais duro durante o próximo governo nos Estados Unidos. Cada vez que as COPs conseguiram chegar a avanços contundentes, como a assinatura do próprio Acordo de Paris ou a inclusão de uma menção ao abandono dos combustíveis fósseis no documento final da última conferência, em Dubai, as negociações prévias bilaterais entre Estados Unidos e China foram decisivas. Sozinhas, as duas potências respondem por cerca de 42% das emissões globais.
Se, por um lado, a negociação sobre o financiamento tende a travar, por outro a regulamentação de um mercado internacional de créditos de carbono pode ser finalizada nesta COP, depois de anos de impasse. A secretária nacional para a Mudança do Clima do Meio Ambiente, Ana Toni, demonstrou otimismo.
"Enquanto a gente está debatendo, no nosso Congresso, um mercado de carbono nacional, a área internacional está andando mais rapidamente agora. Talvez cheguemos, no final da COP29, a um acordo”, disse. “O grupo de trabalho técnico chegou à finalização do trabalho deles, que é sobre as metodologias e os sumidouros, que estavam faltando. E agora os grandes temas de mercado de carbono internacional que eles estão debatendo é qual será o nível de transparência, que tipo de relatórios terão de ser dados", apontou.
Outro tema importante da conferência é que os países começaram a apresentar seus novos compromissos para limitar as suas emissões, conhecidos pela sigla NDC, para além de 2030. As promessas serão formalizadas na COP30 de 2025 em Belém, no Brasil. O processo, entretanto, deve sofrer a influência negativa da volta de Donald Trump ao poder.
"O plano do governo Trump é aumentar as emissões americanas, ao subir a exploração dos combustíveis fósseis, por exemplo. A conta vai ser quanto tempo nós vamos perder em uma corrida que é tão emergencial”, lamenta Márcio Astrini.
"Nós precisamos de pelo menos promessas boas em cima da mesa. Estamos em uma situação em que nem as promessas conseguem ser boas, e as ações são piores do que as promessas ruins. Se a trajetória de ações continuar do jeito que está, a gente chegará a 3C de aquecimento, o dobro do que a gente deveria perseguir e o que está escrito no Acordo de Paris."
O Brasil, no papel de anfitrião da próxima COP, deve apresentar a sua NDC durante a Conferência de Baku. Três propostas encontram-se sobre a mesa do presidente Lula – a menos ambiciosa delas, influenciada pelos lobbies petroleiro e agrícola, defende que o país mantenha o seu compromisso atual, de corte de 53% das emissões até 2030.
Envolvido com a realização da cúpula do G20 no Rio de Janeiro, em novembro, e depois de sofrer um acidente doméstico, Lula cancelou a viagem a Baku. Ele será representado no evento pelo vice-presidente, Geraldo Alckmin.
A COP29 se encerrará no dia 22 de novembro.
A 16ª Conferência da ONU sobre a Diversidade Biológica se encaminha para o fim nesta sexta-feira (1º) em Cali, na Colômbia, com um impasse sobre a delicada questão da repartição dos benefícios genéticos da natureza. Os países megadiversos, como o Brasil, insistem para a criação de mecanismos justos de compensação pelo uso desses recursos naturais – com os quais multinacionais agroalimentares, farmacêuticas ou cosméticas fazem fortunas, principalmente nos países desenvolvidos.
Lúcia Müzell, da RFI em Paris
A solução não poderia ser simples para um problema que, com o avanço das tecnologias, se tornou ainda mais complexo. O sequenciamento genético digital (DSI, na sigla em inglês) de plantas, animais e microrganismos, postos à disposição da comunidade científica, agora dispensa que eles sejam extraídos diretamente da natureza para serem utilizados pelas diferentes indústrias e pela academia, em pesquisas científicas.
“Se, antes, existia a prática de biopirataria de ir a um país como o Brasil e pegar uma determinada semente, como aconteceu bastante no passado, e levá-la para um outro país, desenvolver um novo produto e patenteá-lo, hoje isso não acontece mais”, explica a advogada Bruna Maia, que desenvolve uma tese sobre este assunto na universidade Panthéon-Assas, em Paris, e é consultora jurídica da 3Bio, especializada em regulação internacional de biotecnologia.
“Hoje, os cientistas codificam o genoma de toda essa semente, de uma planta, um animal ou, muitas vezes, um microrganismo, que eles armazenam em nuvens em depositários internacionais e, para desenvolver novos produtos, as empresas simplesmente usam esse sequenciamento genético. Muitas empresas do agronegócio, como Syngenta ou Bayer, fazem uso intensivo disso e não precisam mais de recursos físicos”, complementa Maia. “Elas não precisam mais de uma semente de tomate: precisam simplesmente do código genético da variedade dele e desenvolvem novas, que podem ser, por exemplo, resistentes à seca.”
Os três principais bancos de dados ficam na Inglaterra, no Japão e nos Estados Unidos. Esta configuração obriga as 193 nações signatárias da Convenção sobre a Diversidade Biológica, assinada em 1992, a encontrarem novas formas de retribuir os países que abrigam e conservam estes valiosos recursos na natureza.
A repartição dos benefícios está prevista no Protocolo de Nagoya, de 2010, mas o documento se aplica apenas ao material genético físico. Na última COP, em 2022, ao assinarem o primeiro Marco Global da Biodiversidade, os países concordaram com a criação de um mecanismo multilateral para a repartição dos benefícios, “incluindo um fundo global”. Até agora, entretanto, as discussões em Cali não chegaram a um consenso.
Sobre a mesa, encontram-se alternativas como a instauração de uma taxa de até 1% sobre o valor de varejo destes produtos, ou um percentual inferior sobre os lucros anuais das multinacionais que utilizam sequenciamentos genéticos da natureza. Também está em aberto como esta compensação seria efetivada: se por meio de projetos específicos de proteção da biodiversidade ou por financiamento direto aos países detentores das riquezas.
O tema é prioritário para as nações florestais, como a anfitriã, Colômbia, o Brasil, que abriga a maior área de floresta tropical e a maior biodiversidade do mundo, mas também os países africanos e do sudeste asiático. A negociação envolve, ainda, as comunidades locais e indígenas, que preservam muitos destes recursos.
“A negociação de DSI está muitíssimo intensa. Tive acesso ao último rascunho de acordo, mas eles já incluíram uma nova possibilidade – o que mostra que está ficando cada vez mais complexo”, nota Bruna Maia. “É difícil ter uma decisão até sexta, mas, ao mesmo tempo, percebo que existe uma vontade política muito grande para que saia algum resultado nesta COP. O meu medo é que saia uma decisão, porém não seja a melhor possível, principalmente para os países detentores de biodiversidade. De sair qualquer coisa, só porque querem decidir alguma coisa”, salienta a especialista.
Um dos argumentos dos lobbies industriais e alguns países ricos para não compensar financeiramente os países florestais é que são eles próprios que sustentam a existência dos bancos de dados genéticos, para o benefício de toda a comunidade internacional. Outros, como a Suíça ou o Japão, têm batalhado para que a repartição dos benefícios seja voluntária, uma alternativa amplamente rejeitada pelos países em desenvolvimento.
Setenta por cento dos ecossistemas do planeta já estão degradados, o que ameaça a sobrevivência de 1 milhão de espécies. Para reverter essa tendência, representantes de 196 países voltam a se reunir para negociar a implementação do histórico Marco Global da Biodiversidade, aprovado há dois anos.
Lúcia Müzell, da RFI em Paris
A 16ª Conferência da Biodiversidade da ONU acontece em Cali, na Colômbia, a partir de segunda-feira (21), durante duas semanas. Será a primeira reunião de cúpula desde a assinatura do tratado, que estabeleceu 23 objetivos a serem cumpridos até 2030 para o mundo reverter a perda da natureza, ameaçada pelo aquecimento global, a poluição, a agricultura e a pesca intensivas e outras intervenções humanas. Neste prazo, os países concordaram em proteger no mínimo 30% dos seus territórios.
“Alguns países têm muita biodiversidade e outros têm pouquíssima. Isso dá um sabor diferente aos trabalhos da convenção, porque se você cria metas de conservação muito ambiciosas, quem vai ter que arcar são os países em desenvolvimento. A contraparte para essas metas ambiciosas é ter também ambição em financiamento”, afirma o diplomata Gustavo de Britto Freire Pacheco, coordenador da equipe de negociadores do Ministério das Relações Exteriores do Brasil na COP 16.
Em 2022, o acordo de Kunming-Montreal determinou que um financiamento de US$ 20 bilhões por ano deveria ser disponibilizado até 2025 para os países em desenvolvimento, e US$ 30 bilhões anuais até 2030. Dois anos depois, “não estamos sequer perto disso”, garante Pacheco.
“Essa é uma situação muito preocupante. Vai ser uma COP importante porque vai definir os rumos da implementação do marco global. Na prática, a gente já vai estar negociando o que a gente combinou na COP15, ou seja, como vai ser implementado aquilo que a gente combinou”, indica.
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O Brasil é uma das partes mais interessadas nos diálogos de Cali porque faz parte dos 17 países megadiversos do planeta, com cerca de 20% do número total de espécies da Terra nos seus territórios.
A redução do desmatamento, por exemplo, custa centenas de milhões de dólares ao Brasil por ano – e os recursos recebidos do exterior estão longe de cobrirem as necessidades específicas da proteção da biodiversidade. Para preencher o buraco financeiro, os países têm apostado, em paralelo, no desenvolvimento de mecanismos de financiamento inovador, como o Fundo Tropical Floresta Para Sempre.
“Justamente porque o Brasil está investindo tantos recursos domésticos para reduzir o desmatamento e tantos recursos, inclusive humanos, tempo e energia, em desenvolver mecanismos financeiros inovadores, é que nós nos sentimos muito autorizados a cobrar que os países desenvolvidos façam a sua parte, porque eles não estão fazendo”, salienta Pacheco, à RFI. “Parte do pacote político que levou à aprovação do Marco Global da Biodiversidade foi a criação de um fundo para a implementação dele. Ele foi criado há mais de um ano, e passados 15 meses da sua criação, a situação concreta é que nós temos menos de US$ 200 milhões efetivamente disponíveis.”
Outro tema prioritário para o Brasil, dono da maior área de floresta tropical e a maior biodiversidade do mundo, é o acesso aos benefícios dos seus recursos genéticos. A repartição justa e equitativa desses benefícios está prevista no Protocolo de Nagoya, assinado em 2010. Mas o avanço da tecnologia tornou as regras do texto obsoletas: as pesquisas científicas e o desenvolvimento de novos produtos pela indústria farmacêutica e cosmética não necessariamente precisam ser feitas in natura.
O sequenciamento genético de substâncias animais ou vegetais é cada vez mais realizado à distância pelos laboratórios, com uso de inteligência artificial, e disponibilizado para o conjunto da comunidade científica. Os prêmios Nobel de Medicina e Química deste ano acabam de recompensar cientistas que exploram esse universo, cujo valor econômico potencial é alto e o futuro, ainda desconhecido.
“O avanço da tecnologia coloca a necessidade de nós desenvolvermos novas regras para garantir que o uso dos recursos genéticos, agora predominantemente na sua forma digital, gere benefícios e esses benefícios sejam repartidos de forma justa, principalmente com os países onde está concentrada a maior parte da biodiversidade”, sublinha o diplomata brasileiro.
A negociação promete ser complexa e envolve também as comunidades locais e indígenas, que preservam estes recursos. A solução pode não ser atingida já na conferência de Cali.
O Marco Global da Biodiversidade – equivalente ao Acordo de Paris sobre o Clima – inclui ainda metas como a restauração de 30% das áreas degradadas, a redução pela metade do uso de agrotóxicos e da introdução de espécies exóticas invasoras, que perturbam os ecossistemas.
A notícia de que a cobertura vegetal do continente antártico se acelerou a um ritmo surpreendente nas últimas décadas chama a atenção para os desequilíbrios em curso no polo sul, até então mais poupado das mudanças climáticas. O que acontece na Antártida, entretanto, tem consequências em todo o planeta – em especial para a regulação do clima e a preservação da biodiversidade marinha.
Lúcia Müzell, da RFI em Paris
Imagens de satélite do continente gelado indicam que as superfícies rochosas da península antártica, ao norte, se tornaram 14 vezes mais verdes nos últimos 35 anos, graças à multiplicação de musgos e líquens. A ampliação das áreas verdes é um símbolo do aquecimento da temperatura na região, nos últimos 60 anos.
Nas zonas mais expostas, a alta da temperatura pode atingir 0,34°C por década até o fim deste século. As conclusões dos cientistas da Universidade de Exeter foram publicadas na revista científica britânica Nature Geoscience.
A proteção da "Amazônia branca", como apelidou o ativista ambiental brasileiro José Truda Palazzo, está há muito tempo no radar dos defensores de animais como baleias e focas, diretamente atingidos pela crise climática. A redução das emissões de gases de efeito estufa é fundamental para conter o aquecimento global e o derretimento do gelo no continente, mas ele lembra que a biodiversidade marinha em si é um elemento importante para o equilíbrio do clima na Terra.
"As baleias são a grande sentinela das mudanças que vêm ocorrendo nos oceanos em função do impacto humano. As pesquisas estão mostrando que elas são extremamente importantes no ciclo do carbono dos oceanos, não só por absorverem carbono nos corpos enormes delas, como por fazerem com que haja uma ciclagem de nutrientes capazes de ampliar a capacidade dos oceanos de absorver carbono”, salienta Palazzo, que acompanha há muitos anos as negociações internacionais sobre estes assuntos, como observador.
Na próxima semana, a Convenção para os Recursos Vivos Marinhos Antárticos volta a se reunir e vai discutir duas pautas prioritárias para a preservação dos seus ecossistemas: a criação de novas áreas protegidas na península antártica e a maior regulação da pesca do krill, crustáceo que se encontra na base da cadeia alimentar na região e que é, ele próprio, uma fonte natural de absorção de CO2.
A Rússia e a China têm barrado avanços nestes dois temas. "A frota pesqueira global da China também está se beneficiando do crescimento da pesca antártica, principalmente do krill, mas a China tem se mostrado mais aberta ao diálogo do que a Rússia. Nós esperamos que o Brasil possa envolver os nossos atores políticos, inclusive o presidente Lula, e construir um protagonismo climático voltado também para a conservação da Antártida, a partir das parcerias que mantêm com esses dois países”, indica o ambientalista.
“A proteção da Antártida é a nova fronteira importante da proteção das nossas baleias e do ambiente marinho no Brasil, já que os mares austrais se conectam com o brasileiro e o alimentam", salienta Truda Palazzo.
Pela sua posição geográfica e a rotação da Terra, a Antártida até então era mais protegida dos impactos da mudança do clima do que o polo norte, onde seus efeitos são sentidos a uma velocidade seis vezes superior ao restante do mundo. Entretanto, nos últimos anos e em especial desde 2023, as medições das placas de gelo apontam um fenômeno preocupante: dois anos consecutivos de redução surpreendente das suas extensões, que chegou a 3 milhões de quilômetros quadrados a menos de gelo, em pleno inverno austral.
“Há fenômenos cruzados entre a atmosfera, o gelo e o oceano. Os três evoluem ao mesmo tempo e não sabemos ainda qual está causando o quê. Parece haver mudanças na estrutura vertical dos oceanos, ou seja, nos movimentos ascendentes e descendentes embaixo das camadas de gelo. Essa alteração poderia explicar um excesso de calor vindo do oceano em direção ao gelo, que está sendo bastante impactado desde 2016”, ressalta Martin Vancoppenolle, pesquisador do Laboratório de Oceanografia e do Clima junto ao respeitado Centro National de Pesquisas Científicas (CNRS), onde é especializado nas interações entre o gelo, o oceano e o clima.
“Várias pistas estão sendo consideradas para explicar essa redução recente. A da nossa equipe é que as placas estão ficando mais finas, o que leva ao seu derretimento mais intenso e mais precoce", diz o cientista.
O continente gelado modifica o balanço energético do planeta, ao refletir os raios solares e, assim, contribuir para limitar o aquecimento da Terra. Os ciclos de formação e derretimento das placas de gelo também são essenciais para a circulação oceânica, outro componente do clima terrestre.
A comunidade científica ainda não dispõe de dados suficientes para atribuir a redução recente das placas de gelo às mudanças climáticas – a extensão delas sempre foi variável.
“O derretimento do gelo não é irreversível, até que se prove o contrário. Se voltarmos a níveis de CO2 na atmosfera abaixo dos que temos hoje, em princípio não há razão de ele não se reconstruir rapidamente, porque ele tem no máximo alguns anos de idade, ou seja, é relativamente fácil para ele se recompor, à condição que faça suficientemente frio. Ele é muito diferente das calotas continentais, que precisam de dezenas de milhares de anos para se construir", explica Vancoppenolle.
Uma das principais funções das placas de gelo é justamente proteger as calotas polares, formadas por água doce e cujo derretimento causam a elevação do nível do mar.
O Reino Unido se tornou o primeiro entre os países desenvolvidos a se livrar da energia a carvão – um marco na virada das fontes fósseis, ponto de partida da era industrial moderna, para as energias renováveis, que limitam o aquecimento do planeta.
Lúcia Müzell, da RFI em Paris
A poucos dias do fechamento da última usina da Inglaterra, o engenheiro ferroviário Ray State se recorda que o sonho de qualquer um na região de Nottingham era ter uma oportunidade de trabalhar no local. A central de Ratcliffe-on-Soar fornecia energia para os britânicos havia quase 60 anos.
“Era chamado de 'rei carvão'. A nossa revolução industrial foi baseada no carvão”, contou ele à reportagem RFI. "A nossa luz, as nossas indústrias, tudo funcionava a carvão."
A primeira termelétrica do mundo foi aberta em Londres por Thomas Edison, o inventor da lâmpada, em 1882. Agora, o país inova mais uma vez ao ser pioneiro no fim da energia mais poluente.
State, hoje aposentado, era um dos responsáveis pelo transporte do carvão até Ratcliffe, inaugurada em 1967. Ele atua como representante dos moradores para garantir que as instalações darão lugar a outro tipo de empreendimento próspero para a comunidade.
A companhia alemã Uniper, proprietária da central, afirma que ela será desmantelada antes do fim da década, para dar lugar a um "centro de energia e tecnologia livre de carbono" – cujos detalhes não foram esclarecidos.
"Não sabemos direito quem vai vir, que tipo de negócio será. E se não for uma empresa interessante, que traga valor para a região, como um centro de distribuição, por exemplo?”, questiona State.
Apesar das preocupações locais, o fechamento é um passo fundamental para o cumprimento da promessa britânica de chegar em 2030 com 100% da energia neutra em emissões de CO2 e equivalentes, responsáveis pelo aumento anormal da temperatura na Terra. Até os anos 1980, o carvão representava 70% do aporte de eletricidade do país, mas caiu drasticamente a partir dos anos 2010, graças, em um primeiro momento, à substituição pelo gás natural do Mar do Norte e, depois, por centrais eólicas e solares.
Essa virada foi resultado da Lei de Energia do governo do então primeiro-ministro conservador David Cameron, que limitou a atratividade dos investimentos em fontes fósseis, em especial o carvão, ao mesmo tempo em que estimulou a produção de energias limpas.
Hoje, o gás – das fontes fósseis, a menos poluente – representa cerca de um terço da matriz energética britânica. Outro terço vem do petróleo e o restante é dividido entre nuclear e renováveis (17%).
"Mostramos para o resto do mundo que nós realmente podemos fazer isso. Falavam de apagão, de cortes de luz. Hoje, estamos vendo que é possível trocar por renováveis, já que a solar e a eólica estão mais baratas e as baterias para estocar a energia começam a aparecer”, disse Jess Ralston, analista do think tank Energy and Climate Intelligence Unit, à correspondente da RFI na Inglaterra, Emeline Vin. "Colocar um fim do carvão no Reino Unido marca uma virada no mundo”, celebra Ralston.
O governo britânico assegura que o fechamento "marca o fim de uma era", mas também inicia "uma nova”, com a criação de milhares de empregos nas energias solar e eólica e o desenvolvimento de outras, como o hidrogênio.
"Vamos ter que fazer muito: investir mais em renováveis, em eólicas offshore, garantir que a infraestrutura de transmissão de energia vai suportar esse novo volume na rede. É desafiador, mas muita gente acha que é possível se políticas adequadas forem adotadas”, salienta a analista.
Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), ainda restam 9 mil centrais a carvão no mundo, que emitem um terço do total de gases de efeito despejados por ano na atmosfera. Na cúpula do G7 deste ano, as sete economias mais desenvolvidas do globo se comprometeram a eliminar estas usinas até 2035.
A Itália promete atingir o objetivo no ano que vem, a França, em 2027, e o Canadá, em 2030. Para a Alemanha, entretanto, a meta ainda parece “irrealista”, conforme definiu o ministro das Finanças do país. Berlim, avessa à energia nuclear, visava o fim do carvão apenas em 2038.
"O uso do carvão é problemático na maior parte dos países do mundo, principalmente nos do G20, onde a Índia e a China ainda dependem muito dele. Os Estados Unidos o substituíram por gás natural, mas eles tinham 40% de matriz de carvão, que por sinal é a média mundial”, observa Ricardo Baitelo, gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), de São Paulo.
"O carvão ainda é muito presente, é uma fonte barata de energia e vai ser uma dificuldade grande continuar tirá-lo de vários desses países”, antecipa o doutor em planejamento energético e pesquisador da USP (Universidade de São Paulo).
O desafio é menor no Brasil, cuja matriz energética é majoritariamente renovável, graças à rede hidrelétrica. Mas conforme as necessidades e as condições meteorológicas, o país recorre a mais carvão e, junto com a Argentina, é o único da América Latina que ainda tem planos de construção de novas usinas. A projeto de que regulamenta as eólicas offshore chegou a incluir subsídios às centrais a carvão até 2050.
"O Brasil vem fazendo uma boa lição de casa na parte das renováveis, crescendo de uma forma bastante intensa em energia eólica e principalmente solar. Dos países do G20, é o que está mais alinhado com a meta de triplicar as renováveis até 2030”, frisa Baitelo. "Por outro lado, a descontinuidade das fontes não está acontecendo. A gente poderia abrir mão do carvão, mas o que está acontecendo é o contrário: o carvão tem um lobby forte no Congresso e conseguiu manter os seus subsídios."
A recente promulgação da Política Nacional de Transição Energética pelo governo federal visa atrair R$ 2 bilhões em 10 anos para investimentos na diversificação energética do país. Entretanto, o cronograma e o plano de ação do projeto permanecem vagos quanto à substituição das fontes fósseis, salienta Baitelo.
A diplomata brasileira Letícia Carvalho, eleita em agosto secretária-executiva da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA), braço das Nações Unidas sobre o tema, tem à frente um desafio histórico: obter consenso dos países membros para a definição de um código da mineração no fundo do mar, já no seu primeiro ano de mandato, em 2025.
Lúcia Müzell, da RFI em Paris
O documento deve regulamentar as regras do jogo para a eventual exploração comercial dos recursos minerais guardados nas profundezas dos oceanos. Segundo seus defensores, os metais raros como níquel, cobre, cobalto ou magnésio ali depositados serão, cedo ou tarde, indispensáveis para a transição energética na superfície terrestre, para a fabricação de infraestruturas para energias renováveis e veículos elétricos.
“Os minerais e metais encontrados no fundo do leito oceânico são, com certeza absoluta – a ciência já provou –, uma das fontes energéticas promissoras. No meu entender, eles fazem parte das soluções para substituição de combustíveis fósseis. Mas a sua real relevância na transição energética e o seu lugar no desenvolvimento de tecnologias alternativas ao uso de óleo e gás ainda está para ser verificado”, disse, em entrevista à RFI. “Eu, como secretária-executiva da ISA, vou trabalhar de acordo com a vontade e o entendimento dos Estados partes.”
Mais de 30 países, como Brasil, França, Suécia ou Guatemala, exigem uma moratória completa das prospecções nessas imensas áreas submarinas, enquanto o impacto ambiental da atividade não seja esclarecido pela ciência, de modo independente. Do outro lado, o lobby industrial tem pressa.
O trabalho de Letícia não se dará em águas tranquilas, num momento que a própria ISA busca reconquistar a confiança dos Estados partes e do conjunto da comunidade internacional. O atual secretário-geral, o britânico Michael Lodge, foi descrito pela organização Greenpeace como “uma ameaça aos oceanos”: ele é suspeito de manter vínculos duvidosos com a indústria mineradora, abusar dos recursos financeiros da instituição e até tentar subornar votos pela sua eleição a um terceiro mandato.
A carreira forjada nos corredores da ONU leva Letícia Carvalho, oceanógrafa de formação e ex-coordenadora da divisão marinha e de água doce do Programa Ambiental das Nações Unidas (Pnuma), a pesar a escolha de cada palavra, quando fala. Sua prioridade zero é promover a transparência em uma instituição que reagrupa os 168 signatários da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, dos quais 36 fazem parte do conselho executivo. A sede da ISA fica na Jamaica.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
Apesar da assinatura histórica do Tratado de Proteção do Alto Mar, em 2023, essas áreas ainda são ”terra de ninguém”, e diversos países e industriais batalham para que assim permaneçam. A luta pela sua proteção é antiga e ainda promete ser longa. Quais as chances, hoje, de ver esse cenário mudar sem uma profunda mudança na governança da ISA?
Letícia Carvalho: Estou aqui a celebrar, com você e com todos, a abertura para assinatura e ratificação de BBNJ, que trata da proteção da biodiversidade em alto mar e que vem, sem dúvida alguma, adicionar um elemento de suma importância ao mandato da ISA. Me deixe talvez elaborar acerca de três aspectos que considero fundamentais sobre o papel da ISA e o papel da sua mudança de governança, ou da sua ação transformativa. Vamos lembrar que o mandato da ISA visa garantir a mineração sustentável e responsável em águas profundas. Então, é parte intrínseca do seu mandato defender o equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental, enfatizando que as regulamentações, o regramento e o papel regulador da ISA diante da mineração precisam, devem e apenas podem obter plena fruição se baseados em ciência sólida e conhecimento abrangente.
Um outro elemento fundamental é o apoio à adesão a uma abordagem preventiva, garantindo que a mineração em águas profundas não prossiga até que haja conhecimento científico suficiente para evitar danos ambientais e que isso possa estar garantido intrinsecamente na elaboração do Código de Mineração, que é o documento, o arcabouço de trabalho ao qual todos os países parte e toda a sociedade vão precisar se referir quanto a essa questão, buscando evitar danos ambientais.
O outro elemento é a questão da inovação na governança da ISA, que me parece absolutamente necessária. Há uma necessidade de inovação institucional, fazendo uso da mais recente tecnologia gestão do conhecimento, acesso a dados e aos resultados das pesquisas conduzidas pela ISA e os seus contratantes ao longo dos últimos 30 anos e dando pleno conhecimento e acesso a essas informações no sentido de ajudar a tomada de decisão e a melhoria do processo regulatório.
Também certamente vou levantar-me na defesa de um secretariado muito mais ativo, que busque preencher as lacunas de informação existentes entre os diferentes Estados-membros da ISA, ajudando-os a tomar decisões informadas sobre a mineração em água profunda. É visível uma grande assimetria de conhecimento entre todos os tomadores de decisão, e uma baixa participação na ISA.
Há pressa para a maior regulação da exploração do fundo do mar. Ainda é possível entregar o código da mineração em 2025?
Primeiro, deixe ressaltar a relevância do que você falou: a construção, o desenvolvimento e a finalização do código de mineração. A meu ver, é o ponto de consenso entre todos. Não há rejeição a esse aspecto.
Me parece que toda a questão de haver uma base regulatória sólida que permita a estabilidade regulatória, que dê segurança a todos no sentido da exploração, da explotação e da proteção ambiental, é o ponto de consenso no qual residem as esperanças de que o trabalho da ISA possa acontecer a contento e como previsto na lei. Os Estados envolvidos na questão, inclusive por meio da autoridade, no que diz respeito a essas áreas além da jurisdição nacional, eu queria ressaltar que é responsabilidade primária desses Estados decidir coletivamente a melhor forma de equilibrar necessidades de proteção e preservação do meio ambiente marinho e o interesse da explotação comercial dos recursos do leito marinho, o uso comercial deles além da jurisdição nacional.
Em resumo, o cronograma para finalização do código, o como e quando, está nas mãos dos Estados-membros daqueles que compõem o Conselho e a Assembleia. Eu, como secretária-executiva da ISA, vou trabalhar de acordo com a vontade e o entendimento dos Estados partes. É preciso ressaltar que não houve mudança no cronograma até agora, então estamos todos observando e trabalhando no sentido da conclusão em 2025, conforme o atual programa de trabalho.
Entre a posição do seu antecessor, que defendia acelerar a exploração comercial da mineração no fundo do mar, e a de países que querem uma moratória para garantir a sua proteção, como você pretende se posicionar?
Deixa eu fazer uma distinção, porque às vezes a gente mistura exploração e explotação. A exploração é no sentido da pesquisa e a explotação, no sentido do uso comercial.
A questão da exploração é uma pauta absolutamente consensuada nos 30 anos de existência da ISA, e em pleno desenvolvimento. Quanto à exploração comercial e ao debate de quando e como esse uso comercial deve acontecer, a minha posição é a da devida neutralidade que se espera da secretária-geral.
Como eu disse, cabe aos Estados envolvidos nessa questão, inclusive por meio da autoridade, que os reúne no que diz respeito às áreas fora de jurisdição nacional, decidir coletivamente a melhor forma de equilibrar proteção em meio ambiente, e explotação, uso, benefício, divisão e distribuição de benefícios em águas além da jurisdição nacional.
Mantenho a minha posição de neutralidade, de servidora, estando a serviço das decisões dos Estados-membros.
A transição energética visada sobre a Terra será possível sem os recursos escondidos no fundo do mar? Como você espera chegar a uma resposta que seja coerente com o que a ciência diz sobre os limites do planeta?
É um debate absolutamente fascinante e também muito, muito desafiador. Essa é uma questão, a meu ver, portadora de futuro. A resposta ainda não está em nossas mãos, em nossa geração, pelo menos não neste momento. Ainda espero ver e fazer parte da construção da resposta como secretária-geral da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos.
Os minerais e metais encontrados no fundo do leito oceânico são, com certeza absoluta – a ciência já provou – uma das fontes energéticas promissoras. No meu entender, eles fazem parte das soluções para substituição de combustíveis fósseis. Mas a sua real relevância na transição energética e o seu lugar no desenvolvimento de tecnologias alternativas ao uso de óleo e gás ainda está para ser verificado.
Essas questões não dependem só da ISA. A ISA é um elemento, certamente o elemento regulatório que vai balancear as regras do jogo, que vai estabelecer, fazer cumprir as regras do jogo. Há um ator fundamental que é o próprio mercado e a inovação tecnológica. Esses dois elementos também serão fundamentais no sentido de estabelecer o real papel desses minerais encontrados no leito oceânico e da relevância que terão na transição energética.
Vamos lembrar que o uso comercial desses minerais ainda não está autorizado, de modo que ainda é uma perspectiva de futuro, ainda que de futuro próximo, conforme o cronograma da Isa – esperando que o código seja finalizado ao final de 2025 e que requerimentos de mineração possam, eventualmente, ser tabulados a partir de 2026, com a devida conclusão do código.
De que forma esse código vai se transportar para os países? Deverão adotar leis consequentes, em nível nacional? Como garantir que o farão?
O regramento internacional certamente terá um reflexo nas legislações nacionais, sobretudo dos países interessados na exploração em águas profundas fora de jurisdição nacional. Nós sabemos que esses países reúnem um grande número de diferentes, inclusive países sem acesso ao oceano, países não costeiros. Como o fundo marinho é patrimônio comum da humanidade, eles também terão interesse em um papel e uma possibilidade de atuar como explotadores desses recursos.
O que é mesmo desejável, e que eu espero poder atuar como facilitadora, é que haja complementaridade, sinergia entre essas diferentes legislações e agências dos países. Alguns países já dispõem de legislação para exploração e explotação de minerais metais dentro de suas águas jurisdicionais. Muitas vezes esse tema da mineração em água profunda já está contemplado no Código de Mineração Nacional ou não está excluído do Código de Mineração Nacional. Então, já existem referências por aí em códigos vigentes dentro da jurisdição nacional.
Muito importante sobre o Código de Mineração que está sendo desenvolvido pela Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos é que ele alcança as águas fora das jurisdições nacionais, ou seja, as águas que são patrimônio comum da humanidade. Ele terá os seus próprios mecanismos de implementação de monitoramento via avaliação.
E aí eu trago uma palavra muito importante, que em português eu digo como responsabilização, accountability em inglês, no sentido de que cabe à ISA, como autoridade reguladora, fazer valer a implementação dessas regras de forma harmônica com as regras nacionais, sobretudo nas águas profundas fora da jurisdição nacional que, como você mencionou no início da nossa conversa, talvez ainda tenha uma impressão de ser uma terra de ninguém, uma área pouco governada.
Eu diria que isso talvez seja mais no âmbito da implementação do que no âmbito da regulação ou da própria legislação. Talvez as áreas oceânicas fora de jurisdição nacional sejam uma das mais reguladas no direito internacional. A questão está como essa múltipla governança, com tantas regras distintas e tantos setores, até o setor de transporte na navegação, pesca e proteção mineração, como tudo isso se coaduna de forma mais harmônica é talvez o grande desafio da nossa geração.
Esse é um desafio imenso, em um mundo que, infelizmente, no momento atual, não está tão interligado assim nas suas decisões.
Sem dúvida, a fragmentação atual do mundo não ajuda. É por isso que instituições que preveem a integração, a integridade, a gestão íntegra, completa e, sobretudo, no arcabouço jurídico internacional, precisam da mais absoluta e ampla defesa, porque senão estaremos todos entregues a nacionalismos e à fragmentação, e talvez ao imperativo negativo de não suceder na gestão integrada holística dos fundos marinhos, das águas fora de jurisdição.
Você assume uma entidade internacional cujas fraturas internas foram expostas durante a última assembleia e o processo de sucessão na direção, inclusive com denúncias de conflito de interesses de seus integrantes e tentativa de suborno. Como pretende restaurar essa confiança na ISA? Haverá algum tipo de procedimento disciplinar interno a Michael Lodge, seu antecessor?
Uma pergunta importantíssima. Sem dúvida uma das principais, senão a principal prioridade minha neste momento, ao assumir 1° de janeiro, é o desafio de reconstruir a confiança entre os Estados partes, o secretariado da ISA e a comunidade global, que faz parte da ISA.
Isso inclui representação das comunidades locais, dos países costeiros e dos interessados dos países que não têm acesso ao mar, como também uma comunidade muito importante nesse processo.
A questão da repartição de benefícios deve ser a mais ampla possível, ou seja, todos nós teremos direito a um pedaço do mar e todos nós temos uma obrigação, todos os seres humanos neste planeta, uma obrigação de cuidar desse espaço como nosso.
O meu grande comprometimento é o aumento da transparência, inclusive buscando a imprensa e uma melhor gestão da informação – lembrando que dados gerados pelos contratantes não são não se transformam automaticamente em conhecimento acessível para tomada de decisão e tampouco para o público. Dados gerados pelos contratantes podem ser excepcionalmente bons do ponto de vista científico e interessantes do ponto de vista da descoberta, mas, sem dúvida, são orientados a partir de alguns interesses. Aumentar a congruência entre esses dados e dados independentes é fundamental.
Também faz parte das minhas prioridades buscar com que a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos tenha uma equipe mais responsiva, coesiva, que fale como um e que tenha coerência nos seus propósitos. Mas, sobretudo, o meu objetivo é que operemos com excelência regulatória, entregando a mineração sustentável dos recursos minerais, metais, se demandados pelo mercado e pela sociedade, e, ao mesmo tempo que atue de braços dados com as demais entidades que têm responsabilidade na proteção ampliada dos ecossistemas marinhos. E que a comunicação sobre essas decisões seja ampla, com acesso a todos, traduzida para os diferentes públicos e que, sobretudo, as regras do jogo sejam implementadas, respeitadas. Também que existam mecanismos muito eficientes de correção de curso ou de, como se diz, exclusão do jogo daqueles que eventualmente se desviarem desse caminho.
Eu acho que a parte de implementação dessa regulação é crucial. Olhando para o futuro, eu quero deixar a mensagem de que farei o que for necessário para assegurar o bom funcionamento da Isa.
Com 60% do Brasil tomado por fumaça e queimadas, inclusive nas principais metrópoles, a temporada de incêndios florestais de 2024 simboliza o poder de destruição dos diferentes lobbies antiambientais no país. A tragédia evidencia um Estado impotente para enfrentar uma vasta articulação criminosa, que se ramifica nos governos estaduais, no Congresso Nacional e na Justiça.
Lúcia Müzell, da RFI em Paris
O Ministério do Meio Ambiente e a Polícia Federal suspeitam que grande parte dos cerca de 2 mil focos de incêndio foram lançados de maneira coordenada e criminosa. O manejo da terra por fogo está proibido no território nacional.
A ministra Marina Silva denuncia atos de “terrorismo climático” no país. Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, concorda com a definição. "Se alguém pratica terrorismo ambiental hoje no Brasil, é o Congresso Nacional, além desse terrorismo sendo praticado no chão da floresta. Você tem há muitos anos no Brasil um crime que se organizou, enriqueceu, tomou o lugar de postos políticos – e no Congresso também – e que tinha respaldo de um ex-presidente da República. Esses crimes, que se tornaram extremos, encontraram um clima também extremo neste momento no país", disse à RFI.
Num contexto de seca recorde e aceleração das mudanças do clima, os incêndios se alastram sem controle pelos maiores biomas brasileiros – quase metade dos focos encontram-se na Amazônia, seguida por Cerrado, Mata Atlântica e Pantanal. Os Estados mais atingidos, Mato Grosso, Amazonas e Pará, têm uma intensa presença do agronegócio.
A Polícia Federal investiga a possibilidade de um novo “Dia do Fogo” estar em curso. Em 2019, em uma demonstração de força contra a legislação ambiental, criminosos atearam incêndios coordenados na Amazônia. Os autores foram identificados e levados à Justiça, mas os processos acabaram arquivados e ninguém foi punido. Desta vez, o alvo seria a Mata Atlântica, segundo suspeita o governo federal.
"A impunidade risca o fósforo que incendeia florestas, porque eles sabem que não vão pagar pelo crime. Isso acontece com queimadas, com grilagem de terra, madeira ilegal, garimpo ilegal, invasão de terra indígena. São raríssimos os casos de alguém que perdeu a sua propriedade, porque desmatou ilegalmente", denuncia Márcio Astrini. "A gente precisava tratar crime ambiental tal qual a gente trata uma pessoa que não declara imposto de renda no Brasil, que não paga o imposto do seu carro ou da sua casa: atrás desses, o governo vem com unhas e dentes."
O governo federal vem cumprindo a promessa de acabar com o desmatamento – na Amazônia, caiu 22% no ano passado e este ano os alertas já diminuíram 45%. As operações de campo, as multas e o combate ao crime aumentaram, assim como o orçamento para o Meio Ambiente.
"Esse caos do fogo que a gente está vivendo era para estar muito pior se o desmatamento não tivesse diminuído tanto nesses dois anos. Se isso não tivesse acontecido, teria ainda mais fogo se espalhando pela paisagem", salienta Erika Berenguer, bióloga especialista na degradação da floresta amazônica e pesquisadora-associada do Laboratório de Ecossistemas da Universidade de Oxford. "Porém, o governo tem que parar de focar somente no desmatamento e começar a focar na degradação florestal."
Berenguer lamenta, entretanto, que ações preventivas não tenham sido adotadas, já que desde o ano passado, sabia-se que o fenômeno El Niño traria estiagem para boa parte do Brasil.
"A prevenção aos incêndios é o jeito mais barato e mais fácil da gente evitar esse cenário apocalíptico que a gente está vivendo. Faltou, sim, da parte do governo em 2023 e em 2024, ações muito fortes de prevenção a incêndios florestais na Amazônia", afirma a especialista.
"A gente não pode continuar subsidiando produtores que depois vão usar o fogo que vai se espalhar pelas florestas. Não faz sentido a gente prover subsídios para a produção agrícola para depois a gente cobrar multas ambientais. Isso é um contrassenso, um mau investimento", diz Berenguer.
A pesquisadora de Oxford e o secretário-executivo do Observatório do Clima ressaltam, ainda, a fraca atuação dos Estados na luta contra o fogo: vários deles continuam a emitir autorizações para o uso do fogo e de desmatamento, apesar da tragédia em curso. As contradições também adentram no próprio governo federal, com projetos como a pavimentação da BR-319 na Amazônia, que o presidente Lula quer relançar, ou o de exploração de petróleo na bacia do rio Amazonas.
"O governo também pode decretar uma moratória ao desmatamento nesse momento, decretar emergência por crise climática, dispor de mais orçamento, colocar outros ministérios para trabalhar junto com o Ministério do Meio Ambiente. Fica parecendo que é um problema apenas da Marina Silva. E o ministro da Agricultura?", questiona Astrini. "Grande parte dos focos de incêndio acontecem dentro de fazendas. Quem fala com fazendeiros não é a ministra do Meio Ambiente, é o ministro da Agricultura", sublinha o secretário-executivo do Observatório do Clima.
Ainda pouco conhecida do grande público, a poluição digital ganha novas proporções com a inteligência artificial. Uma pesquisa feita por IA gera pelo menos 10 vezes mais impacto ambiental que um buscador comum. Mas, ao mesmo tempo, a tecnologia também é uma aliada poderosa do meio ambiente.
Depois de e-mails, mensagens e streaming, agora são as emissões de gases de efeito estufa da inteligência artificial que causam preocupação aos cientistas, mas também ao mundo empresarial – incitado a publicar balanços de CO2 das suas atividades. Na corrida pelo net zero (estratégia de descarbonização), entretanto, aparece uma barreira colossal: a IA, ao processar uma quantidade imensa de dados, tem o potencial de esfacelar qualquer meta de redução de emissões, sobretudo das empresas de tecnologia.
Dois exemplos resumem bem o que está em jogo: em julho, o Google divulgou que as suas emissões cresceram quase 50% nos últimos cinco anos, depois que a companhia passou a investir pesado em inteligência artificial. Dois meses antes, a Microsoft havia revelado um resultado ainda mais perturbador – alta de 30% em apenas um ano.
Na França, o Ministério da Transição Ecológica e a Associação Francesa de Normatização (Afnor), especialistas em desenvolvimento sustentável, elaboraram um documento com metodologias de cálculo de impacto e recomendações de boas práticas para estimular o uso "frugal" da inteligência artificial – ou seja, o mais ambientalmente responsável possível.
"A IA frugal não vai necessariamente buscar uma meta específica, mas vai modular o nosso objetivo em função dos recursos que temos, e tendo em mente a redução dos impactos ambientais. O consumo desmedido de energia se tornou cada vez mais caro e as empresas precisarão buscar um consumo eficiente dessa tecnologia”, disse Anna Médan, chefe de projetos da Afnor que codirigiu a iniciativa.
O desenvolvimento dessas ferramentas multiplica de maneira exponencial a necessidade de realização de cálculos complexos. Quanto mais sofisticado é o comando – como no caso da IA generativa, que cria novos textos ou imagens a partir da análise de milhões de dados existentes –, maior será a demanda de energia, de infraestruturas, como centrais de armazenamento de dados e servidores, e de outros equipamentos de informática, como placas gráficas. Assim, a IA contribui também para o aumento da procura por minerais raros como silício e cobalto.
"Hoje, temos IA generativas cujos servidores são estocados em data centers muito longe das empresas, e que necessitam uma grande quantidade de água para refrigerá-los. Esse sistema está chegando ao limite”, adverte Médan.
"Para os hardwares e placas, estamos vendo os processadores de cálculos sendo colocados diretamente nos computadores das pessoas, nas empresas. A divisão entre quem realiza a potência de cálculo e quem a solicita será cada vez mais fluida no futuro – o que significa que, se quisermos mensurar exatamente os impactos ambientais para os produtores e os consumidores de IA, precisaremos de metodologias de cálculo bem precisas", observa.
O tema é levado com a maior seriedade pela Agência Internacional de Energia (AIE), que na suas perspectivas sobre a demanda de eletricidade até 2026, alertou sobre um aumento de mais de 30% ligado à inteligência artificial e às criptomoedas. A entidade afirma que esses dois setores gastaram 460 TWh em 2023, ou 2% do consumo mundial. Mas em dois anos, esse número deve disparar para 1.000 TWh – o equivalente ao consumo de um país desenvolvido como o Japão.
O desafio é de peso para empresas, governos, organizações e instituições. Mas quando faz uma pergunta banal para o ChatGPT, os internautas também não costumam se preocupar com os recursos mobilizados para concretizar as ações virtuais – que têm consequências bem reais, ao serem levados à escala de bilhões de usuários. Trinta anos depois da popularização da internet, a conscientização sobre a poluição digital ainda caminha a passos lentos.
A IA generativa consome dezenas de vezes mais energia por ser polivalente – combina outras inteligências artificiais especializadas, capazes de executar diferentes tarefas como procurar, traduzir, combinar, resumir, escrever e criar novos dados. Deve-se, portanto, evitá-la para realizar comandos simples.
“Os internautas são o último estágio de uma cadeia que consome imensamente mais do que eles, mas mesmo assim, os pequenos gestos contam. Eles precisam ter em mente que os grandes modelos de IA generativa funcionam na base de cálculos de probabilidade, que são muito eficientes para determinados usos. Entretanto, modelos mais especializados em uma tarefa são, com frequência, bem menos gastadores de recursos e mais precisos na resposta”, salienta a especialista.
“E também acho que será necessária uma resposta de mercado para o uso: talvez chegue o momento em que o Chat GPT vai dizer que custa muito caro manter essas IA e vai limitar a sua oferta gratuita."
Este universo, cujos potenciais recém-começaram a ser desenvolvidos, também traz uma série de benefícios para a sociedade. A inteligência artificial já é uma aliada importante do planeta, graças aos mais variados usos: otimiza a eficiência energética de prédios, na construção civil e nas operações de transportes, por exemplo. Pode detectar escapamentos de metano na indústria fóssil, além de identificar irregularidades em diferentes atividades, como o desmatamento ou a pesca ilegais. Diversas iniciativas são descritas no coletivo Climate Change AI, alimentado por especialistas e pesquisadores.
"Tem start ups francesas, europeias e internacionais fazendo coisas realmente incríveis pelo planeta, principalmente na área de computer vision, que é a análise de imagens com IA”, nota Anna Médan.
As ferramentas deram um grande impulso ao desenvolvimento das pesquisas relacionadas ao meio ambiente. Na climatologia, por exemplo, facilitaram o acesso a registros históricos de eventos climáticos e a relação entre os fenômenos extremos que ocorrem agora com as mudanças do clima. Auxiliam, ainda, nas projeções dos eventos que estão por vir – o que pode salvar vidas.
É este equilíbrio entre danos e benefícios que ainda precisa ser encontrado. Os especialistas têm convergido na orientação de que as ferramentas de IA devem continuar a ser desenvolvidas, mas o seu uso não necessariamente precisa ser generalizado. Pelo contrário, deve ser cada vez mais especializado.
A organização das Olimpíadas e Paralimpíadas em Paris deu à cidade um prazo para a realização de um antigo sonho: a despoluição do rio Sena. Apesar das críticas, o projeto bilionário é o maior legado do evento esportivo para a capital francesa.
Lúcia Müzell, da RFI
A epopeia começou há 10 anos, quando Paris foi escolhida para sediar os Jogos de 2024. Fazia um século que a poluição interditava o banho no Sena, mas mesmo assim, a cidade prometeu que algumas das provas de natação ocorreriam no rio. Mais do que um compromisso com o Comitê Olímpico Internacional (COI), o objetivo se tornou uma questão de honra para prefeitura municipal, que queria devolver o Sena para os parisienses.
“Todos os esforços de despoluição sempre são muito bem-vindos. Nós precisamos fazê-los porque sabemos que os problemas ambientais vão ficando cada vez mais complicados, portanto, vai sendo cada vez mais difícil de eles serem resolvidos”, salienta professora Monica Ferreira Porto, especialista em recursos hídricos e qualidade da água do departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Universidade de São Paulo (USP).
Uma série de obras foram feitas para melhorar as estações de tratamento de esgoto, separá-lo das águas pluviais e reduzir a poluição do tráfego fluvial. A conta foi de mais de € 1,4 bilhão e se tornou alvo de críticas de opositores, que acusaram a prefeitura de gastar demais no projeto sem ter a garantia de que o rio ficaria mesmo apto para o banho. As chuvas que caíram na véspera e na abertura dos Jogos Olímpicos colocaram em xeque a promessa: os treinos e a prova de triatlo tiveram de ser adiados devido ao elevado nível de bactérias fecais na água.
“Cidades como Paris ou Londres têm um agravante de terem um sistema misto, em que existe apenas uma tubulação na qual são veiculados o esgoto doméstico e a drenagem de águas pluviais. Todas as cidades que tiveram os seus sistemas implantados no século 19, ou na primeira do século 20, utilizavam muito esse sistema”, relembra a professora.
“A ideia era de que quando chovia muito, o esgoto fosse diluído. Só que fica muito difícil, quando chove muito, a gente conseguir ter recreação de contato primário, ou seja, em que há contato direto com a água”, afirma.
As imagens do rio Sena com uma aparência não tão despoluída assim, durante as Olimpíadas, despertaram polêmica mundo afora. No Brasil, oito anos depois da realização do megaevento no Rio de Janeiro e tendo a Baía de Guanabara como cenário, o assunto virou tema de memes e piadas nas redes sociais.
Mas a Monica Ferreira Porto destaca um aspecto importante: rio despoluído não necessariamente é sinônimo de rio próprio para o banho.
“É muito difícil a gente conseguir esse nível de despoluição em um rio urbano. E muito raramente a gente consegue atingir esse padrão 100% do tempo em rios em bacias hidrográficas tão ocupadas por zonas urbanas”, salienta.
A volta da biodiversidade aquática simboliza o sucesso do projeto – independentemente da cor amarronzada do Sena, que não mudou. O trabalho de despoluição trouxe de volta mais de 30 espécies de peixes para o rio – nos anos 1990, apenas seis eram encontrados. Pescadores de fim de semana agora se tornaram comuns, em pleno centro de uma das maiores metrópoles do mundo.
A limpeza foi mais um passo da revitalização das margens do rio, iniciada com o fim do tráfego de veículos, substituídos por pedestres que frequentam bares, restaurantes, atividades de lazer e até academia instalados na região. Mais do que nunca, o rio compõe a paisagem urbana de Paris e virou uma atração completa da cidade.
“Para uma cidade ter a possibilidade de um rio despoluído a ponto de poder ter um uso dele, mesmo que seja para esportes como remo ou, em um dia de verão, sentar na margem e colocar o pé na água, é muito importante. É muito ruim a gente ter um rio cuja qualidade da água é tão degradada que a população começa a virar as costas para ele”, observa a pesquisadora da USP.
Num planeta que se sabe cada vez mais quente, o Sena tem vocação de ser um importante ponto de frescor para os moradores. A prefeitura parisiense mantém o plano de inaugurar três áreas de banho no rio em 2025, mas a autorização para o uso dependerá da qualidade da água, conforme os testes a serem realizados regularmente. A quantidade de chuvas na véspera será determinante, como mostrou o período das Olimpíadas.
A cada edição, o país sede de uma Olimpíada ou uma Copa do Mundo promete ter o menor impacto ambiental da história – mas, na prática, os objetivos iniciais jamais são cumpridos e o balanço final de emissões não é confiável. Paris 2024 não deve ser diferente, garante o pesquisador alemão Martin Müller, do Instituto de Geografia e Sustentabilidade da Universidade de Lausanne, na Suíça, cidade que abriga o Comitê Olímpico Internacional (COI).
Lúcia Müzell, da RFI em Paris
Müller dirige um estudo comparativo de megaeventos esportivos desde 1990 e traz um olhar cético sobre o discurso ambiental dos organizadores. Os responsáveis dos Jogos de Paris chegaram a prometer realizar a primeira Olimpíada com “contribuição positiva” para o planeta. Depois, evocaram brevemente a meta de as competições serem “neutras em emissões carbono”, graças a compensações com projetos de captura de CO₂ e apoio à sustentabilidade. Por fim, abandonaram o uso dessa expressão, uma admissão de que é impossível promover um evento desta magnitude sem impacto ambiental.
“Vimos que Paris fica na média. Estas Olimpíadas não serão extremamente verdes, mas também não farão mal em relação a outras”, indica o pesquisador. “Quando falamos de ecologia, temos que observar vários aspectos e as emissões de CO₂ é um deles, para o qual o impacto das construções e da vinda de visitantes é o que mais conta. É em função desse número de pessoas esperadas que infraestruturas deverão ser construídas – e podemos constatar que Paris terá mais visitantes que a média dos últimos Jogos Olímpicos”, explica.
A promessa da França é emitir a metade do CO₂ despejado nos Jogos de Londres em 2012 (total de 3,4 milhões de toneladas) e do Rio de Janeiro em 2016 (3,6 milhões de toneladas). Para isso, apenas 5% das infraestruturas necessárias foram construídas para o evento, com técnicas de baixo carbono, e não haverá ar condicionado na Vila Olímpica.
Entretanto, nem as projeções, nem os balanços ambientais finais dos megaeventos esportivos são imparciais e confiáveis, assegura Martin Müller.
“Assim que os jogos terminam, ninguém mais se interessa por isso e não há nem dinheiro para finalizar o balanço ambiental. Faltam dados precisos e transparência. A atenção da imprensa também já se volta para a próxima edição dos Jogos Olímpicos”, observa.
“Um dos maiores problemas é que não tem uma verificação independente do balanço que é publicado, para que seja possível comparar as promessas e os resultados”, complementa ele.
Müller e outros pesquisadores pedem a criação de um organismo independente e com recursos próprios para avaliar com isenção o impacto ambiental dos megaeventos. No caso das Olimpíadas, o próprio COI se mostra imparcial, uma vez que precisa convencer outras cidades a sediarem os jogos seguintes.
Antigamente, quando o impacto ambiental não tinha tanta importância, a concorrência era grande entre os países. Mas hoje, diante da pressão por um evento cada vez mais responsável, está difícil encontrar quem aceite o desafio.
“A situação é que as cidades sabem que vão emitir muito e pensam que vão poder comprar certificados para compensar essas emissões. Só que esses certificados não são eficazes para anular, de verdade, todas as emissões – e essas, sim, serão bem reais. Elas existirão, irão para a atmosfera e terão um impacto na mesma hora”, alega o professor.
Como, então, continuar a celebrar o maior evento esportivo do mundo sem causar tantos danos ao planeta? Martin Müller toca no ponto que muita gente ainda não quer nem ouvir falar: limitar ao máximo os deslocamentos dos viajantes e das expectativas por infraestruturas impressionantes.
“O que eu recomendo é levar os jogos para as pessoas, e não as pessoas para os jogos. Isso pode ser feito com mais fan zones, que podem levar a atmosfera dos jogos às cidades”, sugere. “E deveríamos fazer Olimpíadas só com o que já existe. Isso significa escolher cidades que já possuem o que é necessário, ou então termos mais flexibilidade e aceitarmos que não teremos as infraestruturas que estarão no topo da tecnologia”.
Paris 2024 construiu um novo estádio, um centro aquático e a Vila Olímpica, todos com reutilização prevista após os Jogos. “O pouco que foi construído foi com muitíssimo menos emissões. Estamos falando de 30% menos CO₂ por metro quadrado”, disse Georgina Grenon, diretora ambiental do evento, em entrevista à RFI em espanhol. “Usamos novas técnicas de construção, muita madeira, cimento de baixo carbono, materiais reciclados”, citou.
Já a questão dos transportes foi abordada do ponto de vista local, com a ampliação da rede de transporte público e das ciclovias, e nacional, com a instalação de 30 fan zones espalhadas pelo território francês. Mas o grande elefante na sala, o deslocamento internacional dos cerca de 1,9 milhão de visitantes estrangeiros esperados, ficou de fora. Mais de um terço do total de emissões de gases de efeito estufa ocorrerá por conta do transporte aéreo de atletas, delegações e espectadores.
Segundo um relatório publicado em junho pela organização The Shifters, as emissões geradas pelos trajetos de avião para a Olimpíada de Paris comprometem o objetivo de limitar o balanço do evento a 1,58 milhão de toneladas de CO₂. A entidade, especialista em transição energética, afirma que sem diminuir a presença de público vindo do exterior, é “impossível que um evento como este seja compatível com o Acordo do Clima de Paris”.
A nova sequência de queimadas recordes no Pantanal, na esteira de uma seca prolongada e escassez hídrica, lançam um alerta: as ações humanas associadas às mudanças do clima aproximam os biomas brasileiros do colapso. Nos últimos anos, os cientistas têm advertido sobre o chamado ponto de não retorno da Amazônia, mas os outros ecossistemas do país também correm o risco de não conseguirem mais se regenerar.
O desmatamento acentuado nos vizinhos Amazônia e Cerrado contribui para a seca que impacta no Pantanal. O nível do rio Paraguai, cujas cheias são cruciais para os ciclos da vida no bioma, está quase 70% mais baixo do que seria esperado para o período – e a tendência é piorar nos próximos meses. A atual crise hídrica deve ser a mais grave já registrada, alerta a organização WWF Brasil.
Uma nota técnica da ONG em parceria com a ArcPlan, especializada em geoprocessamento de dados, verificou que as inundações de 2024 simplesmente não aconteceram. A análise dos últimos anos não deixa dúvidas: a maior área continental úmida do planeta está cada vez mais seca.
“Isso acontece devido aos eventos e impactos sucessivos em pouco tempo, que comprometem a biodiversidade e as populações. Elas têm pouco para se recuperar de um evento extremo para o outro, e com isso comprometemos a capacidade que esse ecossistema tem de funcionar”, explica a bióloga Helga Correa, uma das autoras do estudo.
“Um ecossistema precisa das espécies presentes na sua área, senão as plantas, os animais, perdem a capacidade de continuarem existindo como a gente conhece. Este é o ponto de não retorno: ele deixa de ser o bioma tal como a gente conhece”, alerta.
Este ano, os incêndios no Pantanal começaram mais cedo e já consomem a região há cem dias, sem previsão de serem controlados, em meio a condições climáticas adversas. A estiagem e o aumento das temperaturas criam condições mais propensas ao fogo.
O governo federal garante que 85% dos focos de incêndio ocorrem em terras privadas, o que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, classificou como “uma das piores situações da história” do Pantanal. O bioma é habituado às queimadas, que fazem parte do sistema natural da região há milênios. O fogo pode ser provocado por fenômenos climáticos como raios em contato com matéria orgânica inflamável durante a estação seca que vai de maio a outubro.
Entretanto, o abuso do fogo como técnica de manejo agrícola tem feito as chamas se tornarem incontroláveis. Um relatório do MapBiomas indica que 9% da vegetação do bioma pode ter sido degradada pelas queimadas dos últimos cinco anos.
“O Cerrado, o Pantanal e até o Pampa são dominados por uma vegetação mais graminha, arbustiva, que têm às vezes até uma dependência do fogo, e uma adaptação a ele. Entretanto, as atividades humanas têm mudado o regime do fogo e a forma como ele acontece”, salienta Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e coordenadora do MapBiomas Fogo.
“O fator climático contribui e muito área a extensão da área queimada. Para que os incêndios não fiquem cada vez maiores, a gente precisa reduzir o uso do fogo nas práticas agropecuárias”, adverte a diretora.
O uso da terra para a agricultura também está comprometendo a vegetação das margens dos rios. Uma das consequências é que as enchentes se espalham menos e têm duração mais curta – o que gera ainda mais estiagem nos meses seguintes.
“A água que tem no Pantanal não é só explicada pela quantidade de chuva que cai lá. Tem uma contribuição, para os seus rios, da faixa que está localizada no planalto que circunda o Pantanal. As cabeceiras da bacia do Alto Paraguai já ficam no bioma Cerrado”, afirma Helga Correa. “Na hora em que a gente modifica a cobertura e o uso desse planalto, a gente compromete a quantidade de água que vai para o Pantanal e que consegue permanecer nele, penetrando no solo e abastecendo as nascentes”,
Em junho, o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul registraram a maior média de área queimada desde 2012, conforme levantamento por satélites da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pelo menos 411 mil hectares viraram fumaça – ou seja, 51 vezes mais do que a média histórica para o período.
Além dos danos à biodiversidade singular da região, as queimadas também contaminam as águas dos rios com cinzas, que matam peixes e poluem o sistema hídrico das comunidades locais.
A tragédia ambiental se repete quatro anos após 30% do Pantanal ter sido atingido pelos mais devastadores incêndios já registrados no bioma e que mataram 17 milhões de animais vertebrados, conforme estimativas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
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