Brasil-Mundo

Reportagens de nossos correspondentes em várias partes do mundo sobre fatos políticos, sociais, econômicos, científicos ou culturais, ligados à realidade local ou às relações dos países com o Brasil.

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    Empreendedora brasileira é a única mestre cavista estrangeira no setor de vinhos da França

    Marina Giuberti, 45 anos, é uma capixaba de origem italiana que há cerca de duas décadas vem moldando sua reputação no ramo dos vinhos na França. Ela formou-se nutricionista no Rio de Janeiro na virada dos anos 2000 e chegou à Europa em 2005, onde pôde seguir suas paixões profissionais e pessoais.

    Luiza Ramos, da RFI

    Depois de passar por várias cidades, restaurantes e formações, em 2013 Marina fundou sua primeira loja, a cave Divvino Paris, quase ao mesmo tempo em que dava à luz seu casal de filhos gêmeos. Simultaneamente, Marina foi se tornando uma especialista de referência em vinhos e formou uma bela família trilíngue. "Em casa, os meus filhos (hoje com 11 anos) falam italiano com pai, português comigo e francês para as demais situações. Se falam em francês comigo, eu mando voltar e repetir em português. Já o pai diz 'non capisco'. Minha casa, minhas regras", brinca ela, que também é tutora da cachorrinha Petite.

    Determinada em se estabelecer no mercado francês de vinhos, ela abriu sua segunda loja em 2016. O site especializado em entrega bebidas por toda a Europa surgiu durante a pandemia da Covid-19. Recentemente, Marina alcançou o mérito de ser a primeira e única mestre cavista (maître caviste) estrangeira da França, tendo sido apenas a terceira mulher a conquistar o Brevet Professionnel de l’Etat de Sommelerie (Certificado de Sommelier Profissional do Estado Francês). Tais títulos fazem atualmente da capixaba uma referência em vinhos raros e artesanais.

    Apesar da atual carreira de sucesso, ela enfrentou preconceito da família no início ao demonstrar seus objetivos. "Eu sempre quis trabalhar com restaurantes, mas meu pai era médico. Então para a minha família enxergar essa mudança do ramo de saúde para o ramo de restaurante, tinha um pouco de preconceito. Essa é a palavra certa. Então acabou que entrei para a gastronomia pela nutrição", conta a empreendedora, que exala paixão pelo que faz em seu discurso.

    "Até hoje eu uso a nutrição. Para mim, o vinho alimenta a alma. Nós precisamos ter nossos momentos sociais para equilibrar nossa vida corrida. Eu sou muito grata de trabalhar alegrando os casamentos, os finais de semana, os jantares, os eventos dos nossos clientes", diz Marina Giuberti.

    Na França, vinho não é luxo

    No eixo Rio-São Paulo, as caves são mais conhecidas como enotecas e a profissão de sommelier começa a ser aos poucos mais prestigiada. Enquanto na França, o vinho é considerado item básico nas mesas das famílias. Para Marina, a circunstância facilita a entrada no mercado dos vinhos do país.

    "Como aqui o vinho é um produto essencial, na época da pandemia, por exemplo, nós, junto com farmácias, padarias e supermercados, ficamos abertos como comércio essencial. Na França, o vinho é taxado como produto agrícola, então tem uma diferença grande nessa relação em comparação com o Brasil. E é um produto local, normal, não é um produto de luxo", destaca ela, que acrescenta sua atuação com cerca de 1.200 referências de bebidas, incluindo pequenos produtores e vinhos biodinâmicos.

    Além da venda direta aos clientes, a capixaba oferece também cursos de vinhos e viagens de imersão gastronômica, enológica e cultural, as chamadas Wine-Champagne Day. A sommelier foca no público brasileiro que ama vinhos e organiza os passeios de forma personalizada. Em um dia de imersão é possível conhecer mais de 15 rótulos raros em vinícolas que não costumam abrir as portas para turistas comuns, como a familiar Pierre Paillard, em Bouzy, e a Domaine Jacques Selosse, em Avize, ambas na região de Champanhe

    "Na França, a gente usa uma frase que diz 'choisir c’est renoncer' (escolher é renunciar). Fazer essas wine-trips demanda muito trabalho, muito comprometimento, conseguir essas reservas com os produtores é uma tarefa árdua", revela.

    Destaque no tradicional mercado francês

    Marina Giuberti esclarece que ser brasileira e manter seu sotaque não a prejudicam, mas sim acabam por diferenciá-la entre as mais de 6 mil caves do país. Seu perfil atípico instiga a curiosidade do seu público, que passa a respeitá-la ainda mais pelo fato de não ser francesa e mesmo assim obter destaque no setor.

    Profissionalmente, a empreendedora enfatiza o respeito é mútuo entre ela e seus colegas, sendo Marina a única estrangeira com tal nível de especialização na área. Mas além do trabalho, a mestre cavista aparenta ter cativado também o coração da clientela com seu carisma cotidiano nas consultorias de compra de vinhos.

    "(Conquistei) através também do reconhecimento de clientes brasileiros, dos produtores franceses e todos os clientes de bairro franceses, já que o francês compra vinho três a quatro vezes por semana. O cliente francês não vem uma vez no mês, é um produto diário. É a baguete, o queijo e o vinho", pontua Marina.

    As caves Divvino de Marina Giuberti ficam no 3° e 11° distritos (3ème e 11ème arrondissements) da capital francesa.

    5 May 2024, 7:40 pm
  • 5 minutes
    Companhia brasileira de Teatro Munganga completa 37 anos de presença na Holanda

    A companhia, dirigida por Carlos Lagoeiro e Claudia Maoli, se apresenta levando ao público os mais diversos tipos de espetáculos e temas, nos palcos da Holanda e até de outros continentes.

    Clivia Caracciolo, da Holanda

    Carlos e Claudia já eram profissionais no Brasil quando vieram para a Holanda. O casal, sentado no tablado do palco da Casa Munganga, lembra como decidiu assentar as raízes do Munganga em solos pantanosos de Amsterdã há quase quatro décadas.

    Claudia revela que Munganga, palavra de origem africana, “significa comunicação sem a palavra, que se dá através dos gestos, da expressão facial, das caretas, dos movimentos exuberantes.”  

    O diretor Carlos Lagoeiro conta que a companhia se estabeleceu na Holanda, “quase que por acaso” quando vieram apresentar na Europa o espetáculo Bailei na curva, em 1986. Ao passarem por Amsterdã os espetáculos fizeram sucesso e esta foi a motivação para o grupo se estabelecer na Holanda.

    Público diversificado

    Claudia diz que o público que frequenta o local é variado: “há shows noturnos para adultos e aos domingos de manhã as atividades são para crianças a partir de um ano e meio até 5 anos, aos sábados à tarde, os concertos são para crianças a partir dos 6 anos”.

    No passado, o público infanto-juvenil da Holanda e da Bélgica, recebia atenção da companhia de teatro, “que levava até os jovens temáticas para esta faixa de idade”.

    A programação do Munganga se destaca pela variedade de atividades temáticas e de estilos diferentes. De acordo com Carlos Lagoeiro, “acontecem shows de Jazz, música clássica, tango, gafieira, flamenco, fado, além das apresentações de peças teatrais, festivais de filmes, incluindo cinema de diretores indígenas e de povos da floresta, rodas de debates com temas que vão desde a nova ordem mundial, até a retirada das tropas estadunidenses do Afeganistão e a pandemia da Covid, na ocasião. Ou seja. Munganga tem as portas abertas para todos que nela baterem e “vierem nos visitar”, resume Carlos.

    Casa Munganga comemora 10 anos

    A Casa Munganga, em 2024, comemora 10 anos de existência e com a principal característica em “ser um espaço de encontros”, como enfatiza Claudia Maoli. Presenças ilustres já passaram pela sala do Munganga, como, por exemplo, líderes indígenas brasileiros, incluindo o cacique Dadá, o ativista e escritor Ailton Krenak, o pajé Kamarati entre outros.

    Recentemente foi feita uma homenagem a Rita Lee, no show Ela por Elas com seis cantoras brasileiras baseadas na Holanda, cantando músicas da cantora, falecida ano passado.

    A programação para este ano de decênio está se adaptando e prosseguem os encontros fixos mensais como as rodas de choro, a montagem do Cabaré Brasil, shows de forró e ainda, mais uma edição do festival de dança butô, com a participação de bailarinos vindos do mundo inteiro para participar.

    A terceira margem do rio

    O que vem lotando a Casa Munganga é a apresentação da peça solo A Terceira margem, uma adaptação de Carlos Lagoeiro do conto de Guimarães Rosa, "A Terceira margem do rio". Os bonecos são os personagens das histórias contadas ao longo do rio São Francisco.

    Segundo Carlos, o “espetáculo foi baseado na obra de Guimarães Rosa, e ele criou a própria história e foi apresentada pela primeira vez em 2003 com enorme sucesso e recentemente, a convite, foi ao Brasil para se apresentar em um festival de teatro e agora, com bilheteria esgotada, na Casa Munganga”.

    Munganga pelo mundo representando a Holanda

    A companhia de teatro Munganga, apesar de ser brasileira, sempre teve suas montagens com repercussão internacional e representou a Holanda em festivais de teatro em outros continentes, como no Japão, em 2005, com o espetáculo Mama Pia, representado por Claudia Maoli no papel principal e no Paquistão, em 2007 com a peça Mimo, sem contar as participações em várias cidades na Europa. 

    De acordo com Carlos, “os espetáculos do Munganga são físicos com apelo imaginístico muito forte e é o que possibilita a apresentação em várias partes do mundo”.

    Convite para a festa de São João com traço cultural

    “A Casa Munganga é um lugar de celebração, de inclusão, onde as pessoas se reúnem e se se sentem muito bem, e é muito importante colocar as pessoas neste contexto social”, nas palavras de Carlos Lagoeiro.

    Aproveitando a ocasião, Claudia Maoli já convida a todos para a festa de São João, “padrinho eleito do Munganga”, no dia 23 de junho. Será mais um dos eventos em que haverá a possibilidade de trazer até Amsterdã uma face cultural genuinamente brasileira.

    20 April 2024, 11:43 am
  • 5 minutes
    Conheça o brasileiro que integra equipe de designers de um dos principais times de hóquei do Canadá

    O designer André Finhana, de 40 anos, decidiu deixar o Brasil há cerca de dois anos e se instalar em Vancouver. Com apenas três meses morando no Canadá, ele entrou para a equipe de criação do Canucks Sports & Entertainment, do Vancouver Canucks, time canadense da Liga Nacional de Hóquei no gelo.

    Luciana Quaresma, de Vancouver, para a RFI

    “Foi por puro amor ao esporte. Sou um cara de futebol", diz Finhana. "Até brinco com todo mundo aqui, pois eles dizem ‘soccer’ mas eu explico que é futebol. O que eles chamam de futebol aqui é um jogo com a bola oval", ri.

    O brasileiro conta que quando chegou ao Canadá, precisava encontrar um emprego para poder fazer o pedido do visto de residência. Nesta busca, apareceu a oportunidade de trabalhar como motion graphics designer do Vancouver Canucks.

    "Meu perfil se encaixava perfeitamente e eu achei incrível, pois trabalhar com esporte é tudo o que eu mais quero na minha vida. Apliquei, me chamaram e depois de um mês de entrevistas consegui a vaga e estou aqui", diz.

    Finhana é designer há 18 anos e, ao longo da carreira, trabalhou nas principais agências de publicidade do Brasil, chegando a participar de muitos projetos premiados. O brasileiro diz que entrou para o mundo da publicidade por influência de um primo. Como sempre gostou de desenhar, acabou por encontrar espaço para a criação na área do motion graphics

    No Vancouver Canucks, ele é responsável por todo o conteúdo de animação do time canadense. "Sou um animador, ou seja, tudo em um vídeo que não for pessoas se mexendo, basicamente é o motion graphics que faz. Na verdade, até pessoas se mexendo, às vezes. Efeitos especiais, letreiros, fundos, basicamente tudo tem um pouco de animação”, explica. 

    Segundo Finhana, o trabalho é complexo e essencial para causar impacto visual aos torcedores que vão ao estádio Rogers Arena, a casa do Canucks, em Vancouver, acompanhar as partidaa da liga nacional de hóquei. "Este ano, todos os vídeos do Vancouver Canucks que aparecem nos gols e animação do telão no fundo para as redes sociais foram feitos por mim. No estádio, quando aparece no telão um jogador com número na apresentação também é um trabalho feito por mim, assim como tudo que aparece nas redes sociais. Tudo dos Canucks em termos de animação sou eu quem faço", aponta. 

    Sem dificuldade para adaptação

    Finhana conta que, apesar das diferenças culturais, a adaptação ao novo país não foi difícil. "No geral, eu sempre fui muito querido pelas pessoas. Noto uma paciência com as diferenças culturais, pois eventualmente você pode dar um deslize. No Brasil você pode comentar algo, mas em outro país pode soar meio rude algumas palavras você troca”, observa.

    Esta é a primeira vez que Finhana mora fora do Brasil. A língua é um desafio constante para ele, o que chegou a abalar sua autoestima no começo. "Apesar de ser bem familiarizado com o inglês, o dia a dia é bem diferente. Mas eu venho aprendendo muito, as pessoas aqui são muito pacientes comigo”, afirma.

    Segundo ele, xenofobia e racismo não fazem parte do dia a dia em Vancouver. “Eu senti mais preconceito no Brasil do que aqui no Canadá, pois sou filho de nordestinos. Morei em Pernambuco por três anos e, quando voltei para São Paulo, sofri muito preconceito”, lembra.

    Longe da família e da terra natal, Finhana faz questão de mostrar um pouco de suas raízes brasileiras. "Eu me sinto muito responsável por trazer um pouco da minha cultura aqui para o Canadá. Sinto que muita gente tem curiosidade em saber como o Brasil é. Isso é motivo de muito orgulho para mim."

    Segundo o designer, a curiosidade sobre o Brasil dos colegas de trabalho canadenses também é grande. “Sinto que sou quase uma atração. A diferença cultural é grande, eles são mais sérios por natureza."

    Já a experiência que trouxe na bagagem e as aptidões que desenvolveu no Brasil são fundamentais neste novo desafio profissional. "Eu costumo dizer que no Brasil a gente tem um teste de guerra, principalmente na minha posição no final da linha criativa no setor de publicidade: deadlines sempre muito curtas, fins de semanas de trabalhos e noites sem dormir. Com isto acabei por desenvolver habilidades por conta de um processo muito estressante, mas que hoje eu colho os frutos."

    São Paulo e Canucks: times do coração

    São-paulino de carteirinha, além do trabalho que desenvolve com os Canucks, Finhana se tornou um torcedor ferrenho do time para o qual trabalha. “Eu torço para o São Paulo no Brasil e teve uma época em que o time ganhava tudo. Nos últimos anos, não ganha nada e foi exatamente o momento em que eu cheguei no Canadá e conheci o Canucks, que já chegou a algumas finais da liga nacional, mas nunca foi campeão", lamenta.

    O brasileiro conta no ano passado o clube estava na 26a posição na Liga Nacional de Hóquei no gelo. Atualmente está em segundo lugar no ranking. "Tenho a sorte de agora o time estar jogando bem! Tem sido uma temporada ótima pois criativamente estou explodindo, o time de criação é ótimo e é um momento muito bom para toda a empresa”, comenta.

    Finhana agora também veste a camisa dos Canucks, dentro e fora do gelo. “Esses dias eu parei o jogo do São Paulo para ver o Canucks. Go, Canucks, go!”, brinca o designer.

    14 April 2024, 3:37 pm
  • 5 minutes
    Mostra de cinema em Madri homenageia José Mojica Marins, o Zé do Caixão

    A mostra Novocine de cinema brasileiro, que acontece tradicionalmente em Madri, está na sua 17ª edição e este ano ganha uma versão especial. É a Novocine Cult, que ocorre entre os dias 8 e 11 de abril e homenageia o cineasta e ator José Mojica Marins, popularmente conhecido pelo nome do seu personagem mais famoso, o Zé do Caixão. O evento será inaugurado com a exibição do documentário “Maldito – O estranho mundo de José Mojica Marins”, assinado pelos jornalistas André Barcinski e Ivan Finotti.

    Ana Beatriz Farias, correspondente da RFI em Madri

    A mostra terá a apresentação de três dos mais importantes filmes de Mojica Marins. Codiretor do documentário e coautor da biografia do cineasta, Finotti conversou com a RFI sobre a experiência de registrar a vida e obra do artista que é conhecido como o pai do cinema de terror brasileiro.

    Finotti começou sua carreira jornalística em 1991 no periódico Notícias Populares, “aquele que, se você espremesse, saía sangue”, recorda. O jornal já era o preferido de Mojica, que quando ía à redação para divulgar algum novo trabalho, era entrevistado pelo repórter. Foi no Notícias Populares que Finotti conheceu André Barcinski, “um grande jornalista de cultura” e que também era fã do cineasta paulista.

    “O André me convidou: ‘vamos fazer uma biografia do José Mojica Marins’”, lembra Finotti. “Muita gente não entendia que o Mojica não era apenas um ator, não era apenas um personagem. Ele foi um grande diretor de cinema, inovador. Trabalhando com muito pouco, conseguiu fazer filmes de terror fantásticos nos anos 1960 e 1970. Então nós resolvemos contar essa história”, relata.

    Para contá-la bem, os dois jornalistas fizeram cerca de 30 horas de entrevistas com Mojica. Eles ainda conversaram com outras 120 pessoas, porque o livro “Maldito” traça um panorama do cinema brasileiro a partir dos anos 1960, além de contar detalhes sobre a trajetória de Mojica.

    Depois do extenso trabalho realizado para o lançamento da biografia, adaptar as descobertas acerca de Mojica para o audiovisual foi uma tarefa relativamente fácil. “A gente fez esse documentário usando as melhores histórias que a gente tinha levantado para o livro. Repetimos algumas entrevistas, desta vez filmando. E deu esse documentário muito bacana que foi, inclusive, convidado e premiado no Festival de Sundance de 2001”.

    Cenas originais

    Em pouco mais de 60 minutos, o documentário traz cenas originais das películas de Mojica, além de entrevistas com ele e com pessoas que o cercavam, permitindo que o público se aproxime de diferentes aspectos da realidade e da produção cinematográfica do criador paulista. As contradições humanas estão presentes no relato documental, assim como períodos difíceis para Mojica, como o da ditadura militar em que a obra dele foi censurada. Com o lançamento do filme, a riqueza de detalhes impressionou até grandes conhecedores do cinema.

    “Quando o nosso filme ficou pronto, a gente mandou para o festival É Tudo Verdade, no ano 2000, dirigido pelo Amir Labaki. Ele estava no cinema há décadas e ficou muito impressionado porque com nosso documentário mostrava cenas do Mojica, das histórias que ele contava antes dos anos 1960, antes do Zé do Caixão. Ele tinha filmado dezenas de curtas-metragens (...) As pessoas não acreditavam muito no Mojica, que ele tinha feito tantos filmes – 40 longas. Ao ver o documentário, ele viu cenas disso”, explica o codiretor.

    Finotti comenta que esse era o principal propósito do documentário: revelar ao público a carreira de Mojica e contribuir para que a sua obra ocupasse o lugar que lhe é devido. A ideia era mostrar que o cara era digno de respeito, era um cineasta e não um ‘verme’, como ele disse que se sentia no Brasil”.

    Reconhecimento no exterior

    A meta foi alcançada, segundo Finotti, por uma soma de fatores. “Além da biografia e do documentário, nos anos 1990, oito fitas VHS dele foram lançadas no mercado americano com o nome Coffin Joe. Ele passou a ser analisado por críticos do exterior, tanto da Europa como dos Estados Unidos, que nunca o haviam visto, e ficaram de cara. Até críticos e cineastas japoneses ficaram muito impressionados com o Mojica e ele passou a ser respeitado no mundo todo”, conta.

    Foi também uma somatória de diferentes circunstâncias que permitiram a Finotti estar em Madri para apresentar “Maldito – O estranho mundo de José Mojica Marins” na abertura de uma mostra dedicada ao criador do Zé do Caixão.

    “Eu fiquei feliz de saber que a Embaixada [do Brasil em Madri] já tinha o projeto de fazer uma mostra do Zé do Caixão e, por acaso, eu sou o correspondente europeu da Folha de S.Paulo e estou morando em Madri. Quando eu cheguei, há um ano e meio, conheci a Embaixada e o pessoal que faz essa mostra percebeu que eu era o biógrafo do Zé do Caixão. Foi uma coincidência incrível e estou muito feliz por estar aqui”, celebra o jornalista.

    A mostra Novocine Cult marca o retorno da obra de Mojica à Espanha. Filho de um espanhol e de uma argentina que decidiram emigrar para o Brasil, ele já foi homenageado na Espanha em diferentes situações, como no festival de Sitges, em 1978, e na Semana de Cine Fantástico e de Terror de San Sebastián, em 2002.

    Confira mais informações sobre a programação no site da mostra Novocine.

    6 April 2024, 3:10 pm
  • 8 minutes 3 seconds
    ‘Do Sertão a Hollywood’: estilista alagoana Martha Medeiros lança livro de sua trajetória nos EUA

    O cenário é o do filme "Uma Linda Mulher". Em uma das suítes do famoso hotel Beverly Wilshire com vista para a Rodeo Drive, Martha Medeiros montou um ateliê improvisado. Agora a mistura é de rendas, cristais e livros, já que a estilista está em Los Angeles para lançar a obra que narra sua trajetória inspiradora. "Do Sertão a Hollywood", escrito pela jornalista Eliane Trindade, ganhou versão em inglês ("From the Hinterland to Hollywood") e conta desde as raízes de Martha, em Maceió, quando fazia roupas para bonecas até o estrelato com vestidos nos tapetes vermelhos mais famosos do mundo, com peças que adornam diversas celebridades.

    Cleide Klock, correspondente da RFI em Los Angeles

    Uma dessas estrelas escreveu o prefácio da obra, a colombiana Sofia Vergara. A atriz, uma das mais bem pagas da TV americana, conhecida mundialmente por "Modern Family" e que acaba de estrear "Griselda" (Netflix), encontrou Martha nas redes sociais, e em 2015, encomendou seu vestido de casamento com o ator Joe Manganiello.

    No momento da entrevista à RFI, na suíte transformada em ateliê, Martha Medeiros finalizava peças que entregaria pessoalmente no dia seguinte à Sofia Vergara, junto com um exemplar do livro.

    Além de Sofia, Beyoncé, Jessica Alba, Patricia Arquette e diversas outras celebridades são clientes da alagoana, que já teve suas peças em filmes Hollywoodianos como "Um Príncipe em Nova York" e séries como "The Crown". A estilista também assinou o enxoval do papa Francisco, quando ele passou pelo Brasil, em 2013.

    "Do Sertão a Hollywood"

    As pesquisas para o livro começaram em 2019. O trabalho de campo levou Eliane Trindade aos locais de onde vem a obra-prima para os vestidos de alta-costura.

    "Uma das coisas que me atraiu para o projeto foi o fato de que as rendas eram também a geração de lucro para as rendeiras. Eu trabalho nessa área de empreendedorismo social na Folha de São Paulo, então isso me conectou com o trabalho da Martha. Além do glamour, do talento dela, tinha esse lado do sertão. Acho que uma das coisas mais importantes que a gente fez para o livro foi conhecer aquela realidade, mergulhar e ver como a renda foi resgatada das feiras, de um tecido que já foi nobre, deixou de ser e voltou para alta-costura", conta a jornalista.

    O livro é um convite para uma viagem onde a simplicidade se encontra com o luxo, e a força da tradição se reinventa em cada criação. Não é apenas o trabalho de Martha que está descrito na obra e chega a Hollywood, mas o de centenas de mulheres do sertão que entrelaçam os fios para que a estilista os transformem em verdadeiras obras de arte, em vestidos que levam um ano para serem feitos e podem custar US$ 25 mil (cerca de R$ 125 mil).

    No projeto social há 400 mulheres, sendo uma parte com dedicação ainda maior à renda. "Cada vez mais a gente está aumentando esse outro grupo voltado para peças ainda mais especiais e peças de laboratório onde a gente está usando a cor e outras coisas que a gente não usava. Esse é o propósito, além de resgatar coisas antigas, procurar o que nunca foi feito com a renda feita à mão no Brasil", relata Martha.

    Da barraca da feira à alta-costura

    Martha Medeiros mostra com orgulho as mulheres que representa aqui em Hollywood: rendeiras como a Dona Lalinha, que a estilista faz questão de mostrar uma foto. Ela compra as rendas de antigas artesãs, que antes faziam peças como toalhas e porta copos e as coloca em artigos cheios de glamour. A alagoana teve barraca por mais de 10 anos na feira de artesanatos em Maceió, na praia de Pajuçara, e depois que ganhou o mundo nunca deixou de voltar para transformar as vidas de quem ficou por lá. Agora mostra que a beleza pode brotar nos lugares mais áridos.

    "Eu fui ver o percurso, para ver como ela chegou e descobriu isso. Ela percorria quilômetros e ia nos lugares mais inacessíveis atrás de rendeiras. Ela descobria que tinha uma rendeira num município tal, não tinha nem endereço, nem nome completo, ia bater na porta das pessoas e comprava o estoque daquela família de anos. Aquilo mudava a vida daquelas pessoas, ela conseguiu dar escala e agregou valor para um produto que estava subestimado", conta. 

    A estilista continua seu relato: "Às vezes eu vou com uma pessoa do lado e a pessoa fala assim: 'você vai comprar isso, eu não acredito, isso está amarelo, esverdeado, preto, isso faz 25 anos que está ali e ainda está rasgado.' Eu falo, vou comprar e eu sei que eu tenho o dom de Deus de pegar aquilo ali e transformar numa coisa linda. Então eu compro sem medo, sem pena, sabendo o que eu estou fazendo e essa energia é maravilhosa".

    Das freiras francesas ao tapete vermelho

    No século 19, com a ida ao Brasil de freiras francesas, a renda renascença chegou ao nordeste do País e o ofício foi ensinado às mulheres humildes do sertão. A técnica acabou sendo responsável pela inserção delas no mercado de trabalho e representa, muitas vezes, a única fonte de renda para muitas famílias.

    É com essa força da tradição entrelaçada que Martha transforma vidas. Com seu dom e informações de moda, a simplicidade se torna sofisticação, o ordinário, extraordinário, o invisível, visível. Assim, a arte do sertão conquistou Hollywood.

    "Foi um trabalho de muitos anos, fazendo aos pouquinhos e vendo resultado e voltando e dizendo para elas: 'Olha que bacana a gente já consegue ter esse resultado'. A gente acredita muito nisso, que o futuro tem um coração antigo, que essa é a verdadeira joia, o verdadeiro luxo que as marcas de luxo estão desesperadas. Procuramos as rendeiras mais antigas e resgatamos várias técnicas que não existem mais, você olha a própria renda Renascença no Brasil ela não tem mais isso. O que eu quero é isso cada vez mais, trazer essa informação de moda que a gente tem para essa arte e mostrar ao mundo o verdadeiro luxo brasileiro", conclui a estilista.

    17 March 2024, 2:54 pm
  • 6 minutes 52 seconds
    Projeto musical em português criado por compositor brasileiro conquista público de Madri

    No Salón de Embajadores, uma sala dourada da Casa de América, no centro de Madri, gente de toda parte tem se reúne para apreciar concertos musicais em português. O projeto Rua das Pretas, idealizado pelo cantor e compositor brasileiro Pierre Aderne, conquistou um lugar cativo na cena cultural da capital espanhola.

    Ana Beatriz Farias, correspondente da RFI em Madri

    Os shows, que começaram em fevereiro e vão até o início de abril, fazem parte de uma residência artística que o grupo está vivenciando na cidade e revelam ao público, entre histórias e canções, o DNA do Rua das Pretas, nasceu na sala da casa de Pierre Aderne, em Lisboa, Portugal, há 12 anos.

    O que inicialmente era um encontro íntimo e caseiro entre artistas de diferentes nacionalidades, hoje ganha os palcos internacionais levando a música brasileira mundo afora – mas não só ela, como conta Pierre, um fiel defensor do encontro entre os estilos musicais em língua portuguesa.

    “A gente passou demasiado tempo colocando a bandeira à frente da língua quando a música era cantada em português”, pontua o artista, que também é autor do filme “MPB – Música Portuguesa Brasileira: uma conversa musical entre Portugal, Brasil e Cabo Verde”.

    Para Pierre, a vida em Lisboa, onde se dedica a promover encontros de artistas lusófonos, trouxe de volta a união dos países que fazem música em português. “E eu estive no meio disso tudo. Com as minhas passagens pelos estados do Brasil, pelos artistas que eu conheci, pelos compositores que me ajudaram a trilhar um caminho como compositor. Pelas outras culturas que eu provoquei, fui provocado. Acho que é uma colcha de retalhos”, descreve.

    Segundo ele, essa trilha — que gera uma rede composta por cada experiência compartilhada e por cada ideia trocada —, não é, nem de longe, milimetricamente calculada. O que há é menos estratégia e mais intuição: “não é pensado, as coisas vão surgindo à flor da pele”.

    Metamorfose contínua

    Uma das características mais marcantes do “Rua das Pretas” é a constante transformação da composição do grupo. Entre os residentes, que se revezam na condução da festa, e os muitos convidados que já estiveram nesta “sala de casa” itinerante, mais de 200 artistas do mundo lusófono passaram pelo Rua das Pretas. Nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, José Eduardo Agualusa e Valter Hugo Mãe estão nesta lista.

    O percurso que o projeto tem traçado em Madri não foge à regra. A cada encontro, novos convidados sobem ao palco para acrescentar os seus próprios tons ao espetáculo. Num dos shows desta temporada espanhola, a cantora Valéria Lobão teve a oportunidade de cantar, pela primeira vez ao vivo, uma canção que já tinha gravado: “No coração de Mariana”. A faixa tem letra de Pierre Aderne e música de Carlos Fuchs e foi composta em homenagem a Ian Guest, mestre húngaro de diversos artistas brasileiros.

    Entre histórias e canções

    No palco, ao perguntar a Valéria com qual música ela queria iniciar sua participação no show, Pierre brincou dizendo que “o repertório é espiritual” e escutou da artista como resposta: “por falar em espiritual, podíamos fazer primeiro aquela música incrível, que você fez depois de uma inspiração”.

    O anfitrião começou, então, a contar sua história com Ian Guest, que se iniciou ainda na infância – quando este frequentava reuniões de um grupo de teatro da família de Pierre – e culminou numa música escrita como ode a Ian. “Ano passado, eu tive a sensação de perceber a presença do Ian Guest e fiquei a noite inteira pensando nele. Tive a certeza, naquela noite, de que se ele não fosse a Lisboa, eu iria a Tiradentes encontrá-lo”, introduziu Pierre.

    Ele seguiu relatando que, na ocasião, escreveu uma letra pensando em Ian Guest e, na manhã seguinte, ligou para o parceiro musical Nilson Dourado para contar que queria convidar Ian para o Rua das Pretas e estar perto deles. “E o Nilson disse assim para mim: ‘eu acabei de receber a notícia de que ele faleceu esta noite’”, continuou Pierre Aderne, anunciando na sequência que Valéria Lobão cantaria a música composta na madrugada em questão.

    Viver esse improviso banhou Valéria de emoção: “Toda a história foi muito emocionante. Eu acho que a plateia também acabou se contagiando. Pela história e pela música, né? A história do Ian e essa música tão bonita do Pierre com o Carlos Fuchs”.

    Conexão Brasil-Portugal-Espanha

    Quem também tem o rosto estampado no álbum de fotografias da residência artística do Rua das Pretas em Madri e já acumula suas próprias histórias com o grupo, é a cantora Maia Balduz. Ela é portuguesa e, depois de fazer várias participações nos shows do grupo, se tornou residente do projeto.

    Quanto à estrada percorrida junto ao Rua das Pretas, Maia diz que pode aprender bastante. “Tem sido muito bom porque trabalhar com músicos que já estão dentro do círculo há muitos anos é completamente diferente do que com pessoas da minha idade que, embora também sejam muito profissionais e toquem muito bem, não têm a bagagem toda de como nós falamos com o público, como interagimos. Portanto, é aquela bagagem de palco, não é só a bagagem instrumentista ou vocalista. Tem sido uma viagem intensa”.

    Entre indas e vindas de Lisboa a Madri, a cantora tem representado o fado na equação multifatorial que é o Rua das Pretas. O estilo musical, tipicamente português, é integrado à vida e ao repertório de Maia — e de grande parte dos que vivem em Portugal. Fora do país, no entanto, a força e a emoção do fado costumam surpreender.

    “As pessoas ficam sempre muito impressionadas quando ouvem fado, porque acham que é uma coisa muito diferente, muito profunda. Mesmo que elas não entendam, no caso dos espanhóis, a letra, elas estão a sentir tudo”, afirma Maia.

    Falando em sensações que podem atingir a plateia, não é raro ver no público rostos emocionados ao final dos shows. O espetáculo toca de diferentes formas a quem o assiste. A consultora de marketing Mónica Juanas é espanhola e não escondeu o contentamento com o que ouviu: “nos encantou”.

    O fascínio foi tanto que ela buscou, ao final da apresentação, uma forma de levar a música que havia escutado para casa: “Achamos muito especial, muito emocionante, com um contato muito direto com o público. Inclusive, estávamos procurando uma forma de comprar um disco, porque nós gostamos muito”.

    Parceria em som e cor

    Quem, assim como Mónica, vai a um dos espetáculos do projeto Rua das Pretas na Casa de América, encontra a arte brasileira também nas cores e formas dos quadros de Gonçalo Ivo. O pintor é responsável pelas obras que compõem o cenário dos shows. A parceria entre Gonçalo e Pierre Aderne é antiga.

    “Eu fiz todos os cenários do Pierre em Portugal. E são enormes tecidos que confeccionamos, de três metros, dois metros, que eu chamo de bandeiras e que ficaram no Coliseu dos Recreios, em todos os lugares onde ele dá concerto. Eu que faço os cenários e essa é uma associação que tem mais de 12 anos”, relembra Gonçalo.

    Comentando os tantos encontros que acontecem envolvendo o projeto Rua das Pretas, Pierre Aderne lembra que muitos se dão pela primeira vez em cima de um palco. Faz parte do jogo de cena, de acordo com o que conta ele, que os músicos convidados não cumpram uma rotina rigorosa de ensaios.

    “Nunca temos tempo para ensaiar. Eu acho que é até uma desculpa. É como se fosse um primeiro date, um primeiro encontro em que você não sabe muito bem o que vai acontecer. Eu acho que esse suspense faz muito bem à música para não ficar igual. A gente pode tocar 20, 200 vezes uma canção e a ideia é que ela vá se modificando como a gente se modifica também”, arremata.

    PRÓXIMOS SHOWS:

    Quarta-feira,  20 de março de 2024. Artista convidado: Moacyr Luz.

    Quarta-feira, 3 de abril de 2024. Artista convidada: Roberta Nistra

    Horário: 19h30

    Salón Embajadores de Casa de América, acesso pela Plaza de Cibeles, S/N.

    Mais informações sobre os concertos e a compra de bilhetes no site da Rua das Pretas

    16 March 2024, 2:05 pm
  • 7 minutes 40 seconds
    Em livro saudado pela crítica nos EUA, jovem escritor leva leitor americano ao universo brasileiro

    Jovem filho de mãe brasileira e pai americano, Harold Rogers conta em Tropicália sua experiência de crescer na ponte aérea entre os Estados Unidos e o Brasil.

    Luciana Rosa, correspondente da RFI Brasil em Nova York

    Para Harold Rogers, a experiência de escrever é uma batalha diária, um trabalho que exige sangue, suor e lágrimas. Em seu livro de estreia, Tropicália (ATRIA, 2023), o jovem instrutor de boxe cria um mundo ficcional carregado de mistério e intriga que tem Copacabana como cenário e o mix de culturas como tempero.

    “Original e altamente envolvente”, foram os adjetivos escolhidos pelo Good Morning America, da emissora ABC para descrever a obra.

    O jornal The Washington Post ressaltou o talento de Rogers para trabalhar com um conjunto de diferentes vozes e fazê-las se sobressair ao ruído da cidade, fazendo o leitor se perguntar sobre a capacidade real do ser humano de reparar os danos causados àqueles que amamos.  

    Nascido em Ohio, de pai americano e mãe brasileira, Rogers tem dupla cidadania e passou a infância entre as ondas da Baía de Guanabara e a pacata vida de Steubenville, cidade americana onde nasceu e cresceu.

    O autor recebeu a RFI na academia de boxe onde ele trabalha em Nova York para uma conversa sobre o livro que acaba de ser traduzido para o francês, publicado pela editora Calmann-Lévy, e está disponível nas livrarias da França desde 6 de março.

    Entre letras e ringues

    A cidade de Nova York é um desses lugares do mundo em que cada um pode ser o que quiser, destino dos mais diversos perfis, onde o que é considerado normal muitas vezes é ser o mais estranho. Ter uma dupla identidade, como nos filmes de super-heróis, é algo quase esperado dos habitantes desta Gothan City.

    Por isso, descer aos subsolos de uma  academia de boxe em Tribeca para encontrar não um pugilista, mas uma promessa da literatura é algo que nem chega a ser pitoresco. 

    Harold Rogers nos conta como, com seu primeiro livro, vem nocauteando crítica e público, com sua escrita fresca e cadenciada como somente as belas canções da MPB sabem ser. 

    É bastante curioso porque são contextos completamente diferentes: ora, estar sentado escrevendo em um ambiente tranquilo, ora descer para o treinamento. Rogers responde que, para ele, é o balanço perfeito.

    "Escrever é algo que faz você ficar muito na sua própria cabeça, sozinho com seus pensamentos. Na academia, eu convivo com as pessoas, falo com as pessoas e eu estou mais focado no meu corpo, não tanto na minha cabeça. É bom ter esse balanço", diz.

    A relação com o boxe começou quando ele vivia no Brasil, aos 12 anos de idade e começou a lutar na academia que ficava em frente ao seu edifício onde morava, em Copacabana. Ele conta que "estava sofrendo bullying na escola porque era uma criança gordinha".

    "O boxe foi o jeito que eu encontrei de ganhar mais autoconfiança, ter coragem", relembra. Hoje, usa o esporte como meio de sustento.

    E como ele relaciona o boxe com o processo de escrita? "Realmente é um processo. [risos] Eu acho que reescrevi o meu livro inteiro umas dez vezes, do começo ao fim", conta.

    "Quando você começa um livro, você acha que vai escrever uma vez e vai ser um hit, um sucesso enorme. Mas aí você escreve algo, não gosta, escreve aquilo e não tá certo e você vai aprendendo, vai conhecendo melhor o seu próprio trabalho. Com o boxe é assim também", explica. "Você tem que falhar, tem que levar soco na cara. Você sangra, exatamente como você sangra para finalizar um livro", compara.

    A mudança para Nova York

    Rogers conta que veio para Nova York para fazer um mestrado em Belas Artes na Universidade de Columbia, que acabou financiando a publicação de Tropicália.

    "Minha irmã gêmea, que também é uma instrutora de boxe, começou a trabalhar aqui [Church Street Boxing] e me arranjou este emprego", conta.

    Mas o livro nasceu ainda antes da mudança, durante a pandemia, quando Rogers diz ter ficado "exilado do Brasil porque não podia viajar".

    "Foi um processo terapêutico. Durante a pandemia meu avô morreu, meu tio morreu, e eu não pude ir para nenhum dos enterros. Eu estava pensando muito sobre o Rio de Janeiro e escrever esse livro foi uma forma de morar no Rio enquanto eu estava preso em Ohio."

    O livro que traz muitas expressões da língua portuguesa e, assim, desafia o leitor americano, pouco familiarizado com o idioma.

    "Muitos escritores americanos convivem com o mundo latino-americano e escrevem em inglês e espanhol. Mas não muitos usam o português. Eu encontrei uma oportunidade de incorporar o idioma neste livro", aponta. "Como ele é escrito em inglês sobre o Brasil, eu achei muito importante poder ter português nele", ressalta. 

    Tropicália, um misterioso conflito familiar

    Rogers conta que a família do Tropicália se parece um pouco com sua  própria família: Daniel, um jovem da sua idade (26 anos), tem uma irmã e avós muito presentes na sua vida, e um pai americano ausente – uma diferença em relação à sua vivência pessoal. 

    "Eu acho que quando eu escrevi esse livro, eu estava pensando em como seria ter um pai ausente. Como teria sido a nossa vida se ele tivesse deixado a minha mãe no Brasil sem nenhum recurso?", conjectura.

    Um dos pontos altos da escrita de Rogers é sua capacidade de ter empatia com seus personagens, a ponto de poder transmitir variadas perspectivas em primeira pessoa.

    "É uma coisa muito divertida! Difícil, mas divertida. Chegar na perspectiva do Daniel foi fácil porque ele é a pessoa mais parecida comigo. Já dar voz à Lúcia ou à avó Marta foi outra história, porque eu tive que pensar como é ser essa pessoa que eu não sou", comenta.

    A ficção da experiência vivida

    A RFI pergunta a Rogers o porquê da decisão de resgatar o vínculo entre os Estados Unidos e o Brasil. 

    "Acredito que somente focando na sua experiência específica você consegue chegar em temas universais. Você tem que focar no seu mundo interior", enfatiza.

    Utilizando o conceito de multicultural do movimento tropicalista, o autor nomeia o seu romance e, ao se apropriar de um termo amplamente conhecido e associado ao Brasil, ele pretende não deixar nenhuma dúvida sobre as origens de quem é ou do que escreve.

    "A Tropicália é um movimento que incorpora várias influências de fora do Brasil para criar uma coisa brasileiríssima. E o livro é exatamente sobre isso, porque eu sou metade americano, estudei nos Estados Unidos, eu tenho muita influência americana. Mas, eu queria criar alguma coisa com essas influências que fosse algo genuinamente brasileiro." 

    9 March 2024, 4:15 pm
  • 4 minutes 55 seconds
    Produção cinematográfica de diretor paulista acompanha conquistas da comunidade LGBTQIA+

    O cineasta paulista Ricky Mastro vive entre São Paulo e a França desde que fez um mestrado na Escola Nacional Superior do Audiovisual de Toulouse (sul). Há 16 anos trabalhando com um cinema engajado nas questões importantes para a comunidade LGBTQIA+, Ricky frequenta o circuito internacional de festivais e diz se sentir orgulhoso da produção brasileira sobre essa minoria diversa.

    Desde que começou a fazer cinema, o mais importante para o diretor paulista era "poder contar histórias que eu não ouvi quando era jovem, quando eu era adolescente, quando era criança". Ricky afirma que sempre sentiu necessidade de contar histórias da comunidade LGBTQIA+, que representa a identidade dele.

    "Decidi colocar uma visibilidade do personagem onde a sexualidade não fosse tema central da trama. Não que isso não seja importante, que eu desmereço os filmes que fazem isso, que são super importantes e que são super necessários. Mas para mim, nos meus filmes, eu sempre tento colocar como se fosse apenas parte, uma das características dos personagens", explica.

    Ricky começou a produzir curtas-metragens no fim dos estudos de cinema na Faap, em São Paulo. Inicialmente, tratou de temas como "a melhor idade", depois de mulheres lésbicas e do momento em que os pais começam a desconfiar da orientação sexual dos filhos, foco do curta "Xavier", um dos filmes mais conhecidos do autor, lançado em 2016. Frequentador assíduo dos festivais de cinema LGBTQIA+ no Brasil e na França, ele confessa ter orgulho da diversificada e criativa produção brasileira.

    Pista de dança

    Atualmente, Ricky dirige a minissérie "O Mundinho", em desenvolvimento com a Manjericão Filmes e a produtora Rafaela Costa. "A série conta a história das seis últimas décadas da pista de dança dos jovens LGBTQIA+ em São Paulo", explica. Para Ricky, a pista de dança representou historicamente para essa comunidade um local de acolhimento, de expressão da liberdade e de conquista na aceitação de si mesmo e do outro.

    Seis períodos marcantes guiam o espectador na trajetória de dificuldades e da emancipação conquistada pelos homossexuais: a transição democrática, no final de década de 1970; a epidemia de Aids, em 1988; o ano de 1994, quando o Brasil conquista o tetracampeonato mundial de futebol, o governo lança o Plano Real e a música eletrônica ganha as pistas de dança. Depois, em 2003, o primeiro ano do governo Lula libera "a esperança de ser feliz".

    O quinto episódio tem como pano de fundo o golpe parlamentar que depôs a presidente Dilma Rousseff, em 2016. O último capítulo da minissérie se desenrola em 2020, quando a epidemia de Covid repercute particularmente na vida dos jovens. "É uma produção baseada em toda a vivência que eu tive, porque trabalhei na noite durante mais de 15 anos", observa o paulista.

    Longa-metragem

    Em paralelo à minissérie, Ricky trabalha em seu primeiro longa-metragem, "Os Invisíveis", uma produção da Lira Filmes. "É a história de quatro jovens que moram no bairro de Santa Cecília (SP), no verão mais quente que a cidade já enfrentou", destaca. Os protagonistas nasceram com o vírus HIV, adquirido pela transmissão vertical. Na virada do ano, eles decidem fazer um pacto de parar de tomar os medicamentos que evitam o desenvolvimento da Aids.

    Neste projeto que vem sendo elaborado há vários anos, Ricky conta com o acompanhamento de médicos que dão atendimento a soropositivos em um centro de saúde do bairro da Lapa, na capital paulista.

    "Eu tive muito orgulho de saber que no ano passado, a gente conseguiu zerar em São Paulo a taxa de transmissão vertical do HIV", que é a contaminação que ocorre durante a gestação e passa da mãe para o filho pela placenta. 

    "São Paulo é uma das quatro cidades do Brasil onde teoricamente não existe mais esse tipo de transmissão. Então isso me deixa muito contente", finaliza.

    2 March 2024, 8:01 pm
  • 7 minutes 50 seconds
    Exposição de fotografias em Madri evidencia identidade afro-brasileira

    A mostra “Ébano: Contrastes de Luz e Beleza”, em cartaz no Museu Africano de Madri, é composta por fotografias de três artistas que se dedicam a retratar o universo afro-brasileiro.

    Ana Beatriz Farias, correspondente da RFI na Espanha

    Entrar no salão onde estão as obras da exposição “Ébano: Contrastes de Luz e Beleza” é como fazer várias viagens: a países africanos, como o Benim, e também a diferentes estados do Brasil.

    À esquerda de quem adentra o ambiente, estão retratos em preto e branco, feitos no Quênia e na Tanzânia. As peças, que exaltam a identidade cultural das pessoas fotografadas, fazem parte da série “Luz Negra”, de Robério Braga. O projeto tem mais de dez anos de estrada e de exposições pelo mundo e acumula prêmios internacionais.

    O autor das fotos conta que a escolha temática, de algum modo, tem a ver com sua própria história. “Eu sou da Bahia, tenho um contato muito próximo com a comunidade afrodescendente e decidi investigar na África qual a origem do povo afrodescendente do Brasil. Lá eu encontrei essa beleza, essa maravilha, que até hoje encanta”, explica Robério.

    Durante a realização do projeto, o baiano manteve seu olhar “procurando sempre o belo”. E, como ele mesmo ressalta, o título “Luz Negra” não é por acaso: “[Reflete] o respeito que eu tenho pelo povo afrodescendente e a luz que esse povo carrega consigo em todas as partes do mundo”.

    Raízes compartilhadas

    Seguindo o percurso proposto pela exposição, é possível encontrar, no espaço central do salão, fotografias de Enrique Ambrosio. O espanhol é um apaixonado pelo Brasil, onde viveu por 11 anos – entre Recife e Salvador.

    De alma nordestina, como gosta de dizer, ele se dedicou a estudar e registrar semelhanças entre as culturas brasileira (especialmente a baiana) e africana (principalmente no que diz respeito ao Benim). Nas suas expedições fotográficas, Enrique Ambrosio diz adotar uma postura de observação e contemplação da cultura do outro.

    “Você tem que ficar olhando o que acontece, não tem que dizer ‘a gente faz uma coisa melhor’. Tem que ficar sentado, olhando e amando eles. Nada mais”, explica Enrique, que tem como uma das suas grandes inspirações o fotógrafo e antropólogo francês Pierre Verger.

    O espanhol, que também está em cartaz com a exposição “Retornados: Uma história dos baianos na África”, revela que pretende expressar, nas duas mostras, que “o Brasil e a África são como os dois lados do ‘rio atlântico’, e ali se pode encontrar mais ou menos a mesma cultura. A mesma culinária, as mesmas religiões, a mesma arquitetura”.

    Valorizar o belo

    O terceiro eixo curatorial da exposição “Ébano” tem a assinatura de Paulo Henrique Cruz.

    Nos registros, feitos em estúdio, o fotógrafo apresenta mulheres, homens e crianças que posaram para as suas lentes como parte de um projeto que vem desenvolvendo há anos. "Beleza afro" é o nome da iniciativa que tem como objetivo valorizar a autoestima e fazer aflorar nas pessoas fotografadas “o amor e a luz que existem dentro delas”.

    “E elas usam o projeto para vida”, para além do momento da foto, pontua Paulo Henrique. “A fotografia me traz tanta coisa boa que eu acho que é o mínimo que eu posso fazer pelas pessoas: tentar retornar esses benefícios para elas”.

    Os frutos do trabalho realizado são vistos nos depoimentos que chegam ao autor das fotos: “Semana passada eu recebi no Instagram uma mensagem lindíssima, espontânea, de uma beleza enorme, indescritível. Eu já recebi de outras pessoas o mesmo tipo de feedback. Agradecendo a participação, a minha tentativa de buscar o interior das pessoas. Essa beleza, essa forma de viver que estava muitas vezes adormecida, mas que o projeto aflora”, comenta com um sorriso no rosto.

    Mundo Negro

    A exposição “Ébano” está em cartaz até o dia 12 de abril, em uma das salas do Museu Africano de Madri, espaço mantido por Missionários Combonianos do Coração de Jesus. O lugar existe com o propósito de “revalorizar um continente que foi degradado e espoliado” e que, ao mesmo tempo, é o “berço da humanidade”, como explica o diretor do museu, Ramón Eguiluz.

    Ele, que viveu 25 anos no continente africano, conta também que faz parte da essência do museu estar de portas abertas. “Nossa casa é missionária. E como missionários que somos, temos o dever de que ela seja um lugar de acolhida. Todos os que querem expôr aqui – dentro de certas condições, sobretudo de tempo – podem”, explica.

    A ideia de condensar tantos trabalhos relacionados ao universo afro-brasileiro nasceu do setor cultural da Revista Estampa Brasil, dirigida pelo baiano Ronald Muzzangue, que vive em Madri. Ele explica como foi o contato com os representantes do museu, espaço que considera especialmente apropriado para receber a exposição.

    “Vim aqui, conversei com os responsáveis, mostrei o trabalho dos três fotógrafos. Eles gostaram e falaram que estavam muito felizes de receber a mostra”, lembra Muzzangue, que, além de diretor da Estampa Brasil, é antropólogo social e cultural. “O museu tem também uma parte com peças muito antigas e é um espaço que está aberto para todos”, ressalta.

    25 February 2024, 4:48 pm
  • 9 minutes 33 seconds
    Fundação do escritor Paulo Coelho e da mulher, Christina Oiticica, na Suíça, está de casa nova

    Está de cara nova a Fundação que leva o nome do escritor Paulo Coelho e da artista plástica Christina Oiticica, em Genebra, na Suíça. E de casa nova também. Na verdade, um prédio inteiro, de três andares, onde funcionava antigamente um banco, vai abrigar a fundação do casal. Segundo a imprensa, eles pagaram o equivalente a R$ 80 milhões pelo prédio, que tem até caixa-forte no subsolo e fica numa área nobre em Genebra. Depois de 3 anos de reforma, a Fundação vai abrir suas portas este ano.

    Valéria Maniero, correspondente da RFI em Genebra, na Suíça

    “Eu tenho uma grande alegria de ter uma Fundação aqui em Genebra que reúne toda a minha obra, que abre espaço para eventos e cursos, que está 100% operacional”, disse o escritor Paulo Coelho sobre o projeto.

    Toda a obra de Coelho estará reunida no local. Há referências, por exemplo, à fase musical de Paulo Coelho, com exemplares de discos com Raul Seixas, Vanusa, Fábio Jr. e Rita Lee. No futuro, as salas serão equipadas com fones de ouvido para os visitantes escutarem as músicas dele.

    Além disso, há lembranças da infância do escritor, como um sapatinho de quando era bebê e as medalhas que ganhou nos tempos de escola. Manuscritos, assim como arcos e flechas que ele utilizava serão expostos e a máquina de escrever que ganhou com 15 anos ocupa um lugar de destaque.

    Como o sonho de Paulo era ser escritor, preferiu ganhar o objeto de presente a uma viagem para a Disney. A máquina, aliás, está sobre a famosa mesinha em que escreveu “O Alquimista”, “Brida” e “Diário de um Mago”. O fardão da Academia Brasileira de Letras (ABL) e os prêmios recebidos da França também estão expostos. 

    Quem for visitar poderá ver a ficha de quando Paulo Coelho foi preso na ditadura e os relatórios do hospital psiquiátrico, onde foi internado três vezes. Na coleção, ainda há objetos pessoais, como a capa da fase de mago, a jaqueta de quando era hippie, fotografias de vários momentos da vida do escritor, a coleção de cartões e presentes de leitores. Há de 2.700 a 3 mil livros expostos, em 82 línguas, ou seja, um exemplar de cada edição dos livros dele. 

    Espaço maior para preservar a memória do trabalho dos dois

    Em Genebra, no apartamento onde mora com o marido, a artista Christina Oiticica deu entrevista à repórter da RFI e explicou por que resolveram montar o espaço dedicado à obra e à vida dos dois. 

    “A gente decidiu mudar de lugar, fazer esse espaço maior, porque tem um acervo muito grande. O Paulo tem muitos livros publicados, graças a Deus, no mundo inteiro. Só 'O Alquimista' tem mais de 80 traduções. Então, a gente precisava realmente de um espaço para as pessoas que gostam de pesquisar, de conhecer a vida do escritor. E do meu lado, eu tenho muitos trabalhos. Faço muitas exposições, então, queria mostrar também um pouquinho do meu percurso. A gente precisava de um espaço maior para poder mostrar o trabalho e preservar a memória do nosso trabalho”, explicou. 

    Acervo

    Christina Oiticica explica que as obras já terminaram, mas faltam alguns detalhes, mas a fundação deve ser inaugurada este ano ainda e as visitas devem ser feitas com hora marcada. 

    “A pessoa vai poder visitar, fazer a sua pesquisa. Não tem preço de ingresso, é grátis, e vai encontrar muita coisa sobre as nossas vidas. Por exemplo, todo o percurso do Paulo como escritor, antes, como músico, um pouco da história pessoal, os prêmios que ele recebeu. É a nossa história que está ali nesse imóvel”, explica.

    O acervo foi distribuído por andar. No primeiro, a parte do Paulo, no de cima, a dela. O projeto é do arquiteto Marcelo Mendonça. 

    “Lá tem todos os livros dele, os prêmios, vai ter uma parte das músicas, tem uma sala para passar vídeos de conferências dele, da biografia dele também. No segundo andar, é a minha parte, então, tem alguns trabalhos meus, uma parte de vídeo, porque para o meu trabalho é muito importante todo o processo. Tem a minha história”, explica.

    Capelinha para santa e, na caixa-forte, vídeo sobre ditadura

    É também um lugar com direito a capelinha dedicada à santa de devoção do casal e até caixa-forte. 

    “No subsolo, tem uma pequena capelinha de Santa Dulce, uma pequena sala de exposição para alguns trabalhos novos meus e alguns trabalhos de alguém que a gente queira apresentar, algum artista brasileiro, suíço ou de qualquer nacionalidade. Tem muitas fotos contando a nossa vida”. 

    Ela explica que no cofre “vai ter um vídeo contando um pouco sobre o Paulo, da fase em que ele foi preso na ditadura militar, no Brasil, e vai ter também a parte do hospital psiquiátrico”.

    “A gente achou que o cofre era interessante e resolveu não demolir. A gente falou: não, vamos deixar o cofre e aí vamos contar um pouco dessa parte escura, que faz parte da vida, mas que é uma parte não muito feliz, não muito agradável”. 

    Fundação ajuda crianças e doentes

    Segundo a artista, a Fundação existe de duas maneiras: uma invisível e outra visível. À RFI, ela explicou que a invisível é mais importante por fazer trabalhos no Brasil e na Suíça. 

    “No Brasil, a gente faz com os Meninos de Luz, na favela Pavão Pavãozinho, que são 450 crianças que entram no berçário e vão até a universidade. Temos o hospital de Santa Dulce, na Bahia e o orfanato de Nhá Chica, em Minas. Então, tem esse trabalho que a gente faz com as crianças, os doentes. Esse trabalho é muito mais importante do que o imóvel em si, o prédio em si. E aqui na Suíça também a gente ajuda família de prisioneiros, Caritas, Médicos sem Fronteiras”, contou. 

    De um andar para um prédio inteiro

    A fundação saiu do térreo de um edifício para um prédio inteiro, de 200 para 840 metros quadrados. 

    “O Paulo tem muita coisa, muitos prêmios, muitos livros, muita história. E, realmente, a antiga fundação não tinha essa capacidade. Também para mostrar os meus trabalhos. E aí a gente resolveu fazer uma coisa assim mais definitiva. O local é mais central, melhor, de fácil acesso, e pensando também em abrir para o público. Ela está muito bonita”, diz.

    O significado do lugar  

    Christina diz que é difícil responder o que o espaço significa para ela. É um pouco o lugar que vai mostrar uma parte do trabalho deles. 

    “Mas como eu falei, não é a coisa mais importante. É lógico, a gente, um dia, vai morrer, então, vai ficar um pouco dessa história assim visual para as pessoas verem o legado. Mas eu acho que tem outras coisas mais importantes, a ajuda às pessoas que precisam, os livros que chegam na casa dos leitores. Tem muita gente que diz: a minha vida mudou depois que li esse livro, são muito gratas. O espaço é bom para concentrar o nosso trabalho, o que é super importante também, o mais importante. Mas esse trabalho viaja mais do que fica estático ali naquele prédio”, afirma. 

    24 February 2024, 5:23 pm
  • 8 minutes 21 seconds
    Exposição em Madri destaca os agudás, brasileiros que fizeram o caminho de retorno à África

    A mostra “Retornados: Uma história dos baianos na África” é de autoria do fotógrafo Enrique Ambrosio e conta também com a exposição de outras obras, como originais de Pierre Verger.

    Por Ana Beatriz Farias, correspondente da RFI em Madri

    Em pouco tempo de conversa com Enrique Ambrosio já se percebe que o fotógrafo espanhol é um apaixonado pelo Brasil. Ele viveu oito anos em Salvador e três em Recife, cidades onde atuou como diretor de diferentes empresas. Enrique se aposentou desta função há um ano, quando decidiu devolver ao Brasil, em imagens, “um pouco do carinho que havia recebido”, como conta à RFI.

    A partir deste anseio, ele reuniu fotos feitas ao longo de um processo de pesquisa e imersão na realidade afro-brasileira e montou a exposição "Retornados: Uma história dos baianos na África". Em cartaz na Casa do Brasil em Madri, a mostra é fruto de um percurso traçado em busca de compreender a forte conexão entre a Bahia e a África. Foi este interesse que levou Enrique a conhecer a história dos agudás, como são chamados os brasileiros que retornaram ao golfo da Guiné, especialmente ao Benim.

    “Já comecei a conhecer a história dos agudás com os amigos brasileiros baianos que tinham em Salvador. E fui estudando muito, lendo muitas coisas. Fui à África e percebi que eram os dois lados do ‘rio Atlântico’, por falar de alguma maneira. A beira direita e a beira esquerda”, conta o espanhol, referindo-se à conexão entre o que se vive dos lados opostos do oceano.

    Na exposição "Retornados", esta pesquisa imagética é representada em cores, beleza e africanidade. Quem visita a mostra pode perceber com facilidade a quantidade de semelhanças que há entre Salvador e diferentes localidades do Benim que estão representadas nas obras. “A arquitetura, a forma de viver, a música e a religiosidade” foram só alguns dos campos em que Ambrosio descobriu características comuns.

     

    Na trilha de Verger

    O caminho sugerido pela exposição ajuda a contar uma história de ida e volta, percurso que já tinha sido visitado pelo fotógrafo Pierre Verger, grande inspiração de Ambrosio e uma das maiores referências no estudo da religiosidade e da cultura dos agudás. Inclusive, na mostra do espanhol estão algumas das obras originais do antropólogo e fotógrafo francês cedidas pela Fundação Pierre Verger.

    Enrique Ambrosio explica que o fato de Verger ter um olhar de estrangeiro sobre as belezas afro-brasileiras facilitou que ele se identificasse com a obra do francês. “Ele era gringo também. De qualquer jeito, para mim, para compreender um pouco tudo isto, talvez o olhar [dele] de gringo também ajuda. Eu visitava frequentemente a Fundação, vi todos os museus, todas as histórias, todas as fotos”, relembra.

    “Ele estudou muito o candomblé e eu também estudei muito o candomblé, mas eu não quero fazer uma comparação. O Pierre Verger é um mestre, foi meu guia e eu segui seus passos”, comenta o fotógrafo espanhol que diz não ter a ambição de contar “a história”, mas “uma história”, a qual ele mesmo pôde presenciar e vivenciar. 

    Encontros e reencontros

    O antropólogo baiano Ronald Muzzangue, que vive em Madri, foi prestigiar a "Retornados" e pôde viver um reencontro duplo. Com a obra de Pierre Verger, de quem é especialmente fã, e com sua terra natal.

    “A exposição me levou naquele lugar em que nasci. Me levou às ruas de Salvador, ao cheiro da comida, à dança, à religiosidade. Como um homem negro candomblecista e iniciado a Xangô, o mesmo orixá de Pierre Verger, eu me vi naquele lugar. É muito emocionante para mim e eu acho que para todos os baianos negros que venham ver essa exposição de Enrique Ambrosio”, relata emocionado.

    “Não ao racismo”

    Depois de proporcionar uma verdadeira viagem entre Brasil e África, a exposição se encerra com uma seção dedicada a um clamor pelo fim do racismo. No ambiente, estão, lado a lado, uma foto cedida por Ludmila, jogadora de futebol brasileira que atua no Atlético de Madri, e uma foto feita por Enrique Ambrósio de um garoto jogando bola. A atleta prestigiou a mostra e se demonstrou honrada em poder representar uma causa tão importante.

    “Eu sou uma pessoa negra que saiu da favela e hoje eu estou aqui na Espanha, graças a Deus. Tenho uma imagem minha aqui para todo mundo ver e é muito importante que a gente esteja na luta, que vai ser diária. Realmente nós não vamos nos calar e hoje a gente está podendo falar, a gente está podendo brigar e eu acho que a gente tem que aproveitar. Porque estão vindo crianças que necessitam da gente para essa luta, para que elas no futuro não sofram tanto como agora”, defende a jogadora.

    A exposição "Retornados: Uma história dos baianos na África" está em cartaz na Casa do Brasil em Madri, um espaço dedicado à difusão da cultura e da língua brasileiras, mas que também é aberto a acolher manifestações culturais do mundo inteiro, como explica o diretor do espaço, Cássio Romano.

    Segundo ele, “logicamente que temos que difundir a nossa do Brasil, mas sempre estando abertos a outras nacionalidades”. A ideia é que não seja formado um “gueto cultural”, mas um ambiente que abrange todos os tipos de arte e todas as nacionalidades, já que “a cultura é universal”, destaca Romano. 

    17 February 2024, 1:27 pm
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